“Seu marido morreu. Meus parabéns, minha senhora, a sua pensão reduzida ajudará a salvar o Brasil!” Foi com esta ironia que o deputado Jair Bolsonaro fechou um dos seus discursos em 2003 contra a reforma da Previdência de Lula. A mudança: novas pensões de servidores maiores que o teto do INSS passaram a sofrer uma redução no valor que excedesse este teto. Ou seja, até o teto do INSS (de cerca de R$ 5.600) a pensão é integral, depois do teto é de 70%.
O posicionamento do deputado para a reforma era intransigente: “deve ser rejeitada na íntegra, porque não existe nela apenas um bode, há vários bodes.” Em outra oportunidade que usou o microfone da Câmara dos Deputados, comparou-a a um assalto. Em mais outra, chamou a reforma de absurda e imoral. E, em outra, de descabida do começo ao fim: “ninguém me fará votar favoravelmente a um só artigo dessa PEC.”
Pontos específicos da reforma receberam outras adjetivações: covarde, roubo, crime, sacrifício desumano, justiçamento, massacre.
A reforma de 2003 foi um marco importante, embora incompleto, no combate ao privilégio de servidores e de convergência de regras com trabalhadores da iniciativa privada. Apesar dela, a despesa ainda é de R$ 80 bilhões na União e de R$ 160 bilhões nos estados – e cresce.
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Inevitavelmente, o próximo presidente terá que alterar as regras dos servidores. Um dos pontos será encurtar as longas transições de reformas anteriores para vantagens como a paridade. Ela permite que servidores antigos recebam aumentos reais na aposentadoria sempre que os servidores da ativa receberem, sem contrapartida de contribuição.
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A reforma de 2003 tocou na ferida, mas a maior parte dos servidores ainda tem direito a esta vantagem – que não existe no INSS. Bolsonaro chamou a mudança de excrescência: “inativos e pensionistas jamais terão qualquer reajuste”. Não é verdade: recebem a inflação, como os mortais do INSS.
Em 1997, quando o governo Fernando Henrique Cardoso tentou (sem sucesso) fazer a mudança, Bolsonaro já a havia considerado “inadmissível”.
Outro privilégio que será enfrentado pelo novo governo é a integralidade: o direito de ganhar o último salário independentemente do valor das contribuições feitas. A reforma de 2003 acabou com esta possibilidade para novos servidores, mas os anteriores ainda são a grande maioria dos que se aposentam.
Esta é a principal diferença em relação ao regime do INSS e o dos servidores: no INSS o fator previdenciário reduz a média salarial para conceder a aposentadoria, no dos servidores ocorre o contrário, já que a integralidade aumenta a média. Bolsonaro explicou em 2003 porque era contra o fim do privilégio: “Ela pretende fazer uma média dos últimos 35 anos de trabalho desses servidores, e com isso os proventos vão cair muito.”
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A reforma do próximo presidente também afetará a pensão por morte – aquela a que se refere o início deste texto. Ele reduzirá a reposição de famílias com poucos dependentes. A ex-presidente Dilma Rousseff propôs em 2015, o atual Michel Temer em 2016, e ninguém conseguiu ainda esta mudança no INSS.
Quando uma redução foi aprovada para servidores que ganham mais que o teto do INSS, lá em 2003, Bolsonaro criticou: “Queria perguntar aos petistas se, por acaso, o aluguel do apartamento onde mora um pensionista também vai ser reduzido. Quero saber se a assinatura do telefone da viúva vai ter seu preço reduzido”.
Em outro discurso no plenário da Câmara, se indignou: “Que acabem com essa palhaçada logo, colocando um redutor de 90%! Afinal de contas, para que interessa viúva? Ela não produz nada. Ela tem mesmo de morrer.”
Nos anos seguintes, continuou reclamando da medida, que estava “tirando o pão da boca dos órfãos”.
Em 2019, se for o presidente, Bolsonaro terá que reconhecer que muitas despesas se reduzem, sim, com o falecimento de uma pessoa na família. A mudança é indispensável porque, só no INSS, as pensões já consomem mais de R$ 115 bilhões por ano. É mais que todo o orçamento federal da saúde. Ou da educação.
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Contudo, a principal briga do deputado foi contra a instituição da contribuição sobre servidores aposentados e pensionistas – que considerava miseráveis. Se a integralidade privilegia o servidor em relação ao aposentado do INSS, a contribuição reduz a distorção. Ela é de 11%, mas apenas sobre o que for maior que o teto do INSS.
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À época, Bolsonaro afirmou sobre a instituição da contribuição: “constitui afronta ao direito adquirido”. Não foi esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), embora de fato tenha declarado a mudança parcialmente inconstitucional.
Bolsonaro resistia à mudança com base na Constituição e também na Bíblia: “Existe maior covardia do que taxar pensionista, tirar dinheiro da viúva? Isso é uma covardia que até os princípios bíblicos abominam”.
A contribuição dos servidores cobre menos de 20% das despesas de sua previdência, tanto na União quanto nos estados. O restante é coberto pelos cidadãos, apesar de não terem direito aos benefícios desse regime.
Por isso, é provável que aqui também o Bolsonaro presidente tenha que fazer mudanças. Temer tentou aumentar a contribuição para 14%, mas sua medida provisória foi suspensa pelo STF e não recebeu apoio do Congresso.
A mudança que ocorrerá no governo federal já foi feita em vários estados, que possuem contribuição maior do que a da União, de 11%. No Rio de Janeiro, ela foi brecada: o Tribunal de Justiça suspendeu a alteração, depois de ação ajuizada por Flávio Bolsonaro, filho do deputado. Foi em julho último.
Quinze anos atrás, a retórica de Bolsonaro era hiperbólica na defesa do servidor. “Vamos agora justiçar os servidores públicos, vamos mandá-los para o jângal”, provocou no microfone da Câmara.
É verdade que a condição do servidor público era relativamente menos privilegiada lá atrás – antes dos grandes aumentos reais dados pelos governos do PT. Entretanto, as condições de aposentaria eram muitíssimo superiores às do INSS, chamando atenção a revolta de Bolsonaro: “É covardia falar em enfrentar servidor que está morrendo de fome Brasil afora.”
Anos antes, durante a tramitação da reforma de FHC, assim sintetizou as iniciativas do governo para a previdência do servidor: “achei que ele já tivesse sido colocado em um paredão, recebido uns trinta tiros e a situação tivesse sido resolvida. Agora, o governo vem conferir para saber se o corpo do servidor público realmente deixou de respirar”.
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Na reforma de Fernando Henrique, aprovada em 1998, a novidade acabou sendo a criação da idade mínima, de 60 anos para servidores homens e 55 para mulheres. “Não posso admitir que a aposentadoria (do servidor) seja permitida apenas após os 60 anos de idade”. Por conta de regras de transição, até hoje a idade média dos servidores que se aposentam está abaixo disso.
É outro desafio que o Bolsonaro presidente terá que enfrentar. Na PEC de Temer, a idade foi colocada em 63 anos para servidoras mulheres e 65 para homens – como exigência para que os servidores antigos pudessem manter os privilégios a que ainda têm direito. O problema não é só federal, é principalmente estadual: só que as regras estão previstas na Constituição Federal, de forma que a salvação dos estados dependeria de que o presidente Bolsonaro revesse as convicções que tinha.
Não foi só nas reformas da Previdência de FHC e Lula que Bolsonaro foi à tribuna defender a previdência dos servidores. No governo Dilma, foi implementada a previdência complementar (Funpresp), que institui para novos servidores o mesmo teto de contribuição e de benefícios do INSS (trocando então o teto de R$ 33.800 pelo de R$ 5.600). A avaliação de Bolsonaro: “A única certeza que podemos ter neste governo é que pior tudo poderá ficar.”
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Mas o principal desafio de Bolsonaro em 2019, se eleito, será a reforma do regime geral de Previdência, operado pelo INSS. Boa parte das mudanças já poderiam ter sido implementadas décadas atrás, quando Fernando Henrique apresentou sua proposta de reforma em 1995.
O deputado Bolsonaro resumiu assim a PEC de FHC: “uma ampla, geral e irrestrita pauperização de todos os trabalhadores brasileiros.” O déficit atuarial do INSS é de R$ 8 trilhões nas próximas décadas, e o déficit financeiro já será de mais de R$ 200 bilhões em 2019 – seu possível 1º ano de governo.
Uma parte essencial da reforma de Fernando Henrique para o INSS não foi aprovada: a idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, de 60 anos para homens e 55 para mulheres. Bolsonaro foi contra: “A grande maioria dos trabalhadores, pelas exigências do mercado, ao atingir 60 anos de idade não terá os 35 de contribuição.”
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É um erro crasso: a idade mínima foi proposta exatamente por conta daqueles que atingem o tempo de contribuição em idades jovens (atualmente a média de idade nessa aposentadoria é de 52 no caso das mulheres, 55 no dos homens).
A crítica do deputado só faria sentido se a idade mínima já existisse e o tempo de contribuição é que fosse elevado, o contrário da situação existente (ausência de idade mínima, tempo mínimo de contribuição de 35 anos – no caso dos homens).
Somente outros 12 países do mundo não possuem idade mínima para aposentadoria. O General Mourão poderia os chamar de mulambada: como Síria, Irã e Iraque.
Em 2003, Bolsonaro apontou uma solução para o déficit nesse regime: “vamos tirar do INSS os 5 bilhões de reais dos aposentados rurais que nunca contribuíram”. Apesar de o déficit da Previdência rural ser hoje de mais de R$ 100 bilhões por ano, o sistema urbano foi sim deficitário na maior parte dos anos e tem forte trajetória de alta.
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Os 67 discursos no plenário da Câmara contra reformar a Previdência incluem os que são na verdade pela contrarreforma, favoráveis à elevação do gasto. São principalmente defesas por aumentos nos benefícios do INSS – recusados pelos governos.
Nesse tema, Bolsonaro falou inclusive por todo o seu partido na época: “o PP não abre mão de discutir a questão do real aumento do valor dos proventos dos aposentados”.
O problema aqui é que Bolsonaro vocalizou uma narrativa popular, mas falsa: “São milhões de trabalhadores que se aposentaram e que ao longo dos últimos governos vêm sofrendo drástica redução em seus vencimentos”. Na realidade, a Constituição garante a recomposição real (reajuste pela inflação).
Bolsonaro se refere a uma suposta redução das aposentadorias porque o valor delas em proporção do salário mínimo se reduziu. Ou seja, como o aumento do salário mínimo foi persistentemente acima da inflação desde os anos 90, as aposentadorias maiores que o salário mínimo teriam se reduzido.
Só que os aumentos reais do salário mínimo não significam que quem recebe valores maiores teve perda de poder aquisitivo, desde que a inflação seja reposta.
Pense no contrário: se as aposentadorias fossem cortadas em 20%, mas o salário mínimo fosse cortado mais, em 50%, os aposentados ficaram mais ricos? Evidentemente que não, ficaram 20% mais pobres, apesar da proporção do benefício em relação ao salário mínimo ter subido.
Se já está claro que em seu governo Bolsonaro terá de reformar a Previdência, é intuitivo que não terá como fazer uma contrarreforma, aumentando o valor real recebido por quem já é aposentado.
Na realidade, Bolsonaro presidente terá dificuldade até mesmo de dar aumentos acima da inflação para o salário mínimo. Mesmo que decidisse estourar o teto de gastos, uma das vedações a ser acionada é justamente a proibição desse aumento.
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Uma visão mais generosa com a saga de Bolsonaro – décadas subindo à tribuna para discursar contra a reforma da Previdência – é que ele agiria assim por puro corporativismo. É assim que o deputado justifica ter votado contra o Plano Real, que debelou a hiperinflação: militares eram sua base e o Real não era bom para eles.
De fato, fica claro nos discursos a aflição de Bolsonaro com os militares, ainda que as mudanças não o alcançassem. Havia recorrentemente a preocupação de que, uma vez que as reformas inicialmente afetassem os servidores, não demoraria para que fossem propostas para os militares – eleitores do congressista.
Por exemplo, no microfone em 1997: “Quem pode garantir que, para os militares, não será exigido também 60 anos idade para transferência para inatividade?”.
Uma mudança como essa realmente teria muito impacto. Segundo o TCU, quase 90% dos militares foram para inatividade com menos de 54 anos em 2016. Mais da metade se “aposenta” antes dos 49 anos.
Este é outro regime que Bolsonaro deveria repactuar como presidente. Apesar das particularidades da carreira – que possui tratamento diferenciado para aposentadoria no mundo todo – o custo anual é da ordem de R$ 40 bilhões. O déficit é quase igual à despesa, porque há pouca exigência de contribuição: só o déficit é maior que o Bolsa Família, apesar de serem menos de 1 milhão de benefícios.
Particularidades importantes incluem a questão da hierarquia e do vigor físico: pense em um soldado de 60 anos, e recebendo ordens de um superior muito mais jovem. Entretanto, Bolsonaro criticou mudanças feitas por Fernando Henrique que são difíceis de atacar.
“Existem casos esdrúxulos, como, por exemplo, os dos milhares de militares que perderam o direito aos proventos do posto acima na aposentadoria”. Como pode ser sustentável qualquer regime em que a pessoa é promovida quando se aposenta? A aposentadoria inicial seria sempre maior do que o próprio salário final.
A retórica era inflamada. Sobre as mudanças de Fernando Henrique, falou em “frear a favelização dos seus componentes (das Forças Armadas)”. Mas, na prática, os valores médios tanto da “aposentadoria” (reserva/reforma) como das pensões dos militares são maiores até do que os dos servidores civis da União.
Em 1995, poucos anos depois da redemocratização, alertou sobre o esforço para acabar com a paridade para os militares: “para que a disciplina e a hierarquia sejam mantidas nos quartéis, os ministros militares (…) deveriam atacar esta imoral proposta governamental para a Previdência Militar, sob o risco de perderem por completo o comando sobre a tropa, ficando isolados na ”Ilha da Fantasia” chamada Brasília.”
A paridade para os militares existe até hoje. Na verdade, não está claro porque militares mais jovens – a tropa – se insurgiriam contra uma medida que os beneficiaria. A paridade é ruim para quem está em atividade: se aumentos para quem está trabalhando são transferidos obrigatoriamente para os inativos, há mais gente para dividir o butim.
Por isso, diversas carreiras têm procurado burlar a paridade – direito que vigora ainda para a maior parte dos servidores aposentados e pensionistas. É o que ocorre com auditores da Receita e seus recém-criados bônus de produtividade; procuradores da Fazenda e honorários; juízes e membros do Ministério Público e o auxílio-moradia. Essas criações permitem que recebam pagamentos sem terem que repassar aos inativos, o que ocorreria com aumentos salariais tradicionais.
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Outra possibilidade para o leitor que quer ver o copo meio cheio, além de atribuir as posições a mero corporativismo, é observar que os discursos minguaram nos últimos anos. As dezenas de pronunciamentos começam já no emendão da revisão constitucional no governo Fernando Collor (1992) e vão até o governo Dilma Rousseff. Porém, presidenciável, Bolsonaro se absteve de criticar a reforma da Previdência de Temer em plenário.
Ao contrário, chamou em 2016 de populistas os parlamentares que negavam a necessidade de uma “reforma da Previdência, cuja importância reconhecemos”. A defesa dos militares persistiu: “Eles simplesmente não têm como suportar a situação de congelamento ou possível reforma na Previdência.”
Suas críticas à reforma de Temer ficaram para fora do plenário da Câmara: uma porcaria. Nada parecia salvar: ele se disse completamente contra. Sobre a nova fórmula de cálculo, falou em crime e falta de humanidade – talvez desinformado sobre a proposta. Mesmo depois de várias modificações, Bolsonaro não apoiou a PEC – e é difícil pensar em uma mais branda.
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Muito da ira do deputado contra a reforma de Lula era direcionada à mudança de opinião do PT, com quem Bolsonaro votava contra a reforma de FHC: “O que mais está doendo hoje no servidor civil nem é a garfada, a punhalada, a bomba atômica que o PT jogou sobre 1 milhão deles. O que mais está doendo é a traição, pois a dor de ser traído é incomensurável.”
Bolsonaro tinha uma explicação para a reforma feita pelo PT: “entendo que os banqueiros, seus amigos, precisam de mais sangue do nosso povo, e o presidente Lula, de apoio para governar. As reformas serão importantes, sim, mas para empobrecer todos os brasileiros.”
Em outra tarde na tribuna: “O PT, chegando ao poder, traiu os servidores, humilhou os aposentados (…) é lógico, para dar mais lucro aos bancos”.
Ironicamente, agora é um banqueiro – Paulo Guedes – o responsável pela conversão de Bolsonaro.
O plano de governo oficial do candidato não prevê pouca coisa em relação à Previdência: “reformas serão necessárias tanto para aperfeiçoar o modelo atual como para introduzir um novo modelo”.
Sim, reformas da Previdência no plural.
O que o plano quer dizer é que fará tanto uma reforma paramétrica, como as propostas até agora no Brasil, como uma reforma estrutural, mudando o financiamento do regime para a capitalização.
Esta segunda provoca em curto prazo uma grande perda de arrecadação, porque as contribuições deixam de financiar os atuais aposentados para serem investidas no mercado. Junte-se esta ideia com o plano de reduzir o déficit primário em 12 meses sem aumentar a carga tributária e só é possível concluir que uma ampla reforma paramétrica terá de ser feita.
Ainda que a forte convicção que demonstrou durante décadas contra reformar a Previdência tenha sido perdida, o histórico de declarações de Bolsonaro vai ser no mínimo um prato cheio para sua oposição, tumultuando a aprovação de uma reforma já muito difícil.
“Companheiros do PT, não adianta fazer brilhantes discursos contrários à reforma da Previdência e depois votar a favor”. A traição do PT quando saiu da oposição para o governo e propôs a reforma, recebeu uma reprimenda bíblica de Bolsonaro:
“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque devorais as casas das viúvas e, para o justificar, fazeis longas orações; por isso sofrereis juízo muito mais severo.”