O presidente eleito e seu ministro da Educação prometem a desesquerdização do ensino no Brasil. Parte da sociedade civil – não só à esquerda – tem sérias ressalvas a essa agenda. O bonde do “veja bem” inclui conservadores como Martim Vasques da Cunha e Francisco Razzo. Ricardo Vélez Rodríguez chegou a ir à imprensa contemporizar a situação, prometendo enviar ao Congresso uma versão moderada do projeto Escola sem Partido.
Tudo o que Bolsonaro precisa, no momento, é de exemplos do que quer combater. Hoje, agir como um esquerdista de cabeça fechada comunica à população que Bolsonaro tem bons pontos. Não por acaso, as últimas décadas de domínio das universidades por esquerdistas de cabeça fechada comunicaram a milhões de brasileiros que o Escola sem Partido tem bons pontos.
O vestibular da USP, aplicado no último fim de semana, é um presentaço para Jair Bolsonaro e sua trupe desesquerdizadora. Em mais de uma questão, opiniões controversas, com as quais apenas esquerdistas concordam, apareciam como resposta correta.
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Numa das questões (a 2 no caderno V), por exemplo, a Fuvest pede ao aluno que assinale uma alternativa para completar a seguinte frase: “o capitalismo neoliberal, após os anos 80, caracteriza-se”.
Opção A: “pela prevalência da agricultura e pecuária no PIB dos países
desenvolvidos”. Como nossas escolas mal ensinam a diferença entre país industrializado e país desenvolvido, essa ficou fácil.
Opção C: “pela adoção de políticas que restringem a fluidez dos capitais (…)”. Nem precisa ler o resto. Os capitais nunca ultrapassaram fronteiras com tanta fluidez quanto hoje.
Opção D: “pelo fortalecimento do papel do Estado nos direitos sociais e pela diminuição do papel das finanças em relação ao PIB mundial”. Pelo menos a segunda parte da questão é claramente falsa. O setor financeiro se tornou mais importante desde os anos 1980.
Opção E: “pela formação de blocos econômicos entre países periféricos, que impediram a livre circulação de capitais e contiveram o aumento das desigualdades”. A globalização desde os anos 80 representa justamente o oposto, com maior circulação de capitais.
Apresento todas as opções para que o leitor perceba como opera a ideologização do ensino. Numa pergunta de múltipla escolha, quatro opções factualmente falsas são apresentadas. Isso facilita o trabalho do bom aluno para que ele perceba qual a alternativa correta: a narrativa da esquerda sobre o assunto.
A opção correta, B, apontava o seguinte: “[o capitalismo neoliberal, após os anos 80, caracteriza-se] pelo crescimento da concentração da riqueza e das finanças em detrimento dos setores produtivos e pela tendência à diminuição dos direitos sociais”.
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Houve concentração de riqueza na era do capitalismo neoliberal? Depende. Dentro dos países desenvolvidos e de alguns emergentes, realmente houve aumento da desigualdade nas últimas quatro décadas. Por outro lado, a desigualdade de renda global caiu. Em outras palavras, a desigualdade aumentou dentro de muitas fronteiras, mas diminui consistentemente no nível mundial.
Branko Milanovic, um dos maiores especialistas vivos em desigualdade global, aponta justamente um movimento igualitário desde os anos 1980, e principalmente no início dos anos 2000.
Não há, portanto, como concordar objetivamente com a resposta. Os formuladores da prova se referiam às desigualdades internas ou a desigualdade global? Não há referência explícita a nenhuma das duas.
E o que seria o crescimento das finanças em detrimento do setor produtivo? Quando alguém compra uma ação, o objetivo é tornar-se sócio de uma empresa do setor produtivo. Quando se trata de um título público, o investidor está financiando o governo ou uma empresa do setor produtivo. Dividir a economia entre setor financeiro e produtivo faz tanto sentido quanto discriminar o setor de commodities. Sem financistas, nenhuma empresa moderna produz. Toda grande empresa depende de financiamento externo. O setor financeiro, em grande parte, existe para ajudar o setor produtivo, e não em detrimento dele.
Mesmo aceitando esse preconceito ideológico antifinancista, fato é que o setor financeiro aumentou sua participação no PIB durante o período anterior à Segunda Guerra Mundial, depois voltou a crescer entre 1945 e 1980. A financeirização, portanto, não distingue o capitalismo neoliberal pós-anos 80 das outras eras capitalistas.
Por fim, a pergunta sugere que o neoliberalismo levou a uma tendência de diminuição dos direitos sociais. A porcentagem de seres humanos subnutridos caiu expressivamente no período. O acesso à educação e saúde se espalhou como nunca. A pobreza caiu a ponto de a ONU cumprir algumas metas do milênio antes do previsto. Os últimos 38 anos foram muito positivos para a população mais pobre.
A resposta correta apontada pela USP é extremamente controversa e reflete o discurso ideológico de esquerda sobre as últimas décadas – ou o “capitalismo neoliberal”. Discorri a questão 2 por mero exemplo. A mesma prática se repete várias vezes: quatro opções completamente absurdas aparecem em contraste com a visão socialista sobre um assunto.
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Noutra questão, para não ficar só num exemplo, a USP pediu aos vestibulandos que respondessem por que a Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra, dentre algumas opções. É um debate ainda aberto entre economistas, historiadores e cientistas sociais. Deirdre McCloskey acha que foi o ambiente de ideias. Daron Acemoglu crê na importância das instituições. Essas duas opções não aparecem na questão, que abre com um trecho do historiador comunista Eric Hobsbawm.
A resposta correta aponta que a Revolução Industrial deveu-se a “profundas transformações agrárias expressas pela concentração fundiária, perda da posse da terra pelo campesinato e formação de uma mão de obra assalariada”. Novamente, uma visão cara à esquerda e controversa para todo o resto do espectro político é apresentada como a única correta. Pode até ser uma explicação razoável – e esse é outro debate –, mas não é adequado num exame de admissão para a melhor universidade do país.
O vestibular 2019 da USP é o exemplo perfeito que Bolsonaro precisa para intervir em universidades. Apesar de vinculada ao estado de São Paulo, a USP é um símbolo de expressão nacional, e a ideologização do vestibular grita para a população que este é um problema real. Se a polêmica não foi maior até agora, é apenas porque os temas – revolução industrial, neoliberalismo e cia – não importam muito ao brasileiro médio, ao contrário das questões de gênero que marcaram o Enem.
Bolcheviques de apartamento, radicais sem coragem e intelectuais que pouco pensam, quando em contato com o cidadão comum, se expõem como personagens ridículos, servindo como exemplo para quem, como Bolsonaro, se dispõe a combatê-los. Não é surpreendente que a população se revolte contra a doutrinação. Surpreendente é a parcela dos pesquisadores realmente sérios que ainda racionalizam a baixaria ideológica das universidades públicas brasileiras.