Não, leitor atento, eu não mudei de opinião sobre a reforma. Sim, leitor desatento, sou um defensor da reforma, apesar do título acima. Só achei que, hoje, faria bem criticar quem concorda comigo. Considero merecido. Até os melhores e mais qualificados economistas escondem do público um fato crucial, simples e incontestável: a necessidade de reforma da Previdência não tem a ver com servidores ricos e privilegiados.
Pelo contrário: nenhuma reforma será efetiva sem tirar direitos da maioria. A solução para o problema não precisa passar por uma caça aos privilégios. A dificuldade de financiamento da previdência brasileira não passa por uma nova caça aos marajás.
Em janeiro de 2019, aproximadamente 35 milhões de brasileiros estavam aposentados pelo INSS, cerca de 4,6 milhões recebem o BPC – Benefício de Prestação Continuada. No mesmo mês, o Brasil tinha 670 mil servidores federais civis inativos. Essa diferença no número de beneficiários explica por que o INSS pesa mais no orçamento, apesar de pagar menos.
O INSS gastou R$ 589,5 bilhões e arrecadou R$ 395,2 bilhões em 2018, gerando um déficit de R$ 194,3 bilhões. Já a despesa com a previdência dos servidores civis foi de R$ 79,9 bilhões, com receitas de R$ 33,4 bilhões e déficit de R$ 46,5 bilhões. As despesas com INSS se aproximam de metade do orçamento federal, sendo aproximadamente sete vezes as do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) civil.
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Mais importante: os gastos com o INSS têm crescido consideravelmente mais rápido nos últimos anos, aumentando a diferença de dimensão. Cerca de 50% dos gastos com aposentados e pensionistas do setor privado correspondem aos benefícios até um salário mínimo. E, como o salário mínimo tem crescido mais que o PIB nas últimas décadas, a maioria do gasto com INSS tem crescido a taxas mais rápidas que o PIB.
Adicionemos nesta equação o crescimento da população idosa, acima de 3% ao ano e também acima do PIB. No caso do RPPS, há fatores relevantes contrabalanceando esse cenário, como a aplicação do teto do INSS às aposentadorias de juízes e promotores.
Por esses e outros motivos, a equipe técnica do Congresso Nacional prevê uma tendência explosiva no déficit do Regime Geral, o que não se vê nas projeções para o déficit dos servidores federais civis. O desequilíbrio não está nos privilégios.
Tudo isso se reflete na reforma previdenciária. Nos primeiros 10 anos, o governo pretende economizar com o INSS pouco acima do quadruplo poupado no RPPS. O valor está em linha com a razão entre os déficits de ambos.
No longo prazo, apesar da regra de transição mais rápida, a maior parte do valor poupado com a reforma do RPPS civil virá de regras também aplicadas ao RGPS (o Regime Geral, de todos).
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Nenhuma medida da reforma foi tão vendida como anti-privilégios quanto a proposta de alíquota progressiva de contribuição previdenciária. E qual será o valor economizado com essa mudança em 20 anos? Menos R$ 13 bilhões. O prejuízo na arrecadação causado pelas alíquotas menores para quem ganha pouco supera a receita gerada com a alíquota marginal de 22% nos supersalários.
Os reformistas não falam em privilégios por serem picaretas. Primeiramente, há mesmo muitos privilégios que merecem combate. Basta checar os números de beneficiários, receita, despesa e déficit que estão acima. Além disso, trata-se de uma defesa – justa, calcada em fatos – contra os espantalhos historicamente criados pelos populistas: quem defende controle fiscal odeia pobres, etc, etc, essas bananices que a gente escuta no Brasil. Por fim, lembrar dos privilégios é uma estratégia legítima e efetiva de persuasão.
Infelizmente, o discurso sobre privilégios se tornou central demais. E a triste verdade, como comprovam dados de fé pública que citei acima, é que o desequilíbrio da Previdência não tem a ver só com juízes, procuradores e seus amigos.
De tão usada, a retórica dos privilégios voltou-se contra os criadores. As pessoas olham para a reforma da Previdência com seus cortes focados no INSS e em gente que mora longe do Jardim Europa, e acham que os reformistas não cumprem o que prometem.
Mas o problema não pode ser resolvido caçando marajás, porque sua origem não tem a ver com marajás. Entre 1997 e 2018, os gastos federais saíram de 14% para 19,7% do PIB. Deste aumento de 5,7 pontos percentuais, 5 foram para gastos com BPC, INSS e Abono Salarial. O governo federal aumentou seu tamanho em um terço, mas quase tudo foi para três programas cujos beneficiários estão longe de ser ricos.
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Como se não bastassem todos os motivos supracitados, economistas que sabem que são privilegiados neste país desigual e violento. No debate da reforma previdenciária, precisam defender restrições à aposentadoria de gente que ganha menos de 3 salários mínimos e nunca estudou macroeconomia. Soa cruel para muita gente, e é compreensível. Mas é a verdade que precisa ser dita: a questão previdenciária só vai ser resolvida com o sacrifício de gente comum.
No século 20, o Brasil aprendeu a duras penas porque Estado quebrado e inflação prejudicam primeiramente o pobre. Cortar benefício de gente pobre é ruim? Certamente, mas tem coisa pior: 1964, inflação descontrolada, décadas perdidas, pobreza e desigualdade, por exemplo. O descontrole fiscal está na raiz de muitos males típicos da América Latina. Cabe a nós trabalhar para não repeti-los.