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Para quase todos os socialistas e afins, privatização é xingamento. Para boa parte dos liberais e conservadores, é meme. O resultado não poderia ser outro: poucos assuntos importantes são tão mal discutidos quanto privatizações.

Pessoalmente, sou simpático a privatizações, mas não dirijo as críticas apenas ao campo que discorda de mim. Há muitos liberais que descumprem essas que considero as boas práticas para discutir o assunto. A privatização, por todo o debate público, se tornou um símbolo do que é bom ou ruim. E os símbolos frequentemente acabam por esconder o objeto, piorando as conversas que a gente tem sobre ele.

Acho que as 5 boas práticas abaixo seriam quase unânimes entre especialistas de diversas correntes políticas. Não se trata de defender uma ou outra posição final, mas de algumas informações pouco controversas que, se reconhecidas de antemão, dão maior profundidade quando discutimos privatizações.

1) Privatizar não pode, e nem deve, servir ao saneamento do déficit público

A soma do que a União possui em todas as estatais listadas na bolsa (Petrobras, Caixa, Banco do Brasil, Eletrobras e muitas outras) não chega à casa dos 200 bilhões de reais.

O déficit primário do governo federal, por outro lado, ficou em 120 bilhões de reais em 2017 e 2018. A projeção mediana entre os economistas do setor privado, coletada pelo Ministério da Economia, estima em cerca de R$ 100 bilhões o déficit de 2019 e em R$ 65 bilhões o de 2020.

Ainda que o governo privatizasse cada centavo das maiores estatais do país, não daria pra cobrir dois anos de déficit previdenciário. E as receitas viriam de uma vez só, enquanto o déficit reaparece todo ano.

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É jurídica e politicamente inviável vender todas essas estatais em poucos anos. A data de término de uma privatização no Brasil é imprevisível. João Doria sabe bem disso, pois saiu da prefeitura sem entregar muita coisa. Existem prazos obrigatórios, processos que podem ser abertos, um Judiciário que adora atender a processos irrazoáveis e muitos outros empecilhos.

Pela insuficiência e falta de previsibilidade no recebimento da arrecadação, privatizar não pode ser estratégia para sanear as contas públicas. E imagino que muitos bons economistas liberais concordam comigo que também não deve ser o motivo para vender ativos públicos.

Vender um ativo para cobrir o déficit da previdência é abrir mão de capital para pagar gastos correntes. É abrir mão de patrimônio público pelo motivo errado.

Privatizar é bom porque pode melhorar serviços públicos, a produtividade de setores e gera retorno à sociedade no longo prazo por fatores que vão muito além do pagamento ao governo.

Melhorar aeroportos, ferrovias, museus, escolas, praças, parques e estradas, gerando assim um bom retorno à sociedade, é um motivo adequado para vender patrimônio. Diminuir o déficit primário, não.

2) O desenho do leilão (e do mercado) importa muito

Imagine que o governo, ao vender uma estatal, conceda um monopólio ao grupo privado ganhador do leilão. Mesmo após a privatização, há o impedimento legal de concorrência. Ainda que a situação melhore com relação aos tempos de governo, o monopolista privado provavelmente ficará bem longe do que a sociedade exige.

De certa forma, foi o que aconteceu no setor de telefonia. Sem dúvidas, a situação melhorou na comparação com o tempo em que a linha da Telebras, alcançada após um alto preço e muita fila, era declarada no Imposto de Renda. Mas há custos de entrada desnecessariamente altos no mercado, muitos causados por regulações ruins – a obrigatória e cara manutenção dos sistemas de orelhões, por exemplo.

Como resultado, pouquíssimas empresas concorrem no novo mercado de telefonia, o investimento atual é insuficiente, a internet é cara e lenta e os serviços das teles são recordistas de reclamação. O setor pode até ter melhorado, mas continua bem ruim.

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No governo Dilma, houve o caso das concessões que impunham tetos ao lucro da empresa concessionária, desincentivando a exploração criativa do ativo e reduzindo seu valor de mercado. As concessões de Dilma ficaram marcadas por defeitos como esse, no desenho das propostas, que dificultaram.

Privatizações podem envolvem ONGs sem fins lucrativos ou grandes fundos de investimento estrangeiros. Podem estabelecer monopólios privados ou mercados de alta concorrência. Tudo depende do desenho, das regras estabelecidas para o leilão dos ativos e o funcionamento posterior do mercado.

Que o leitor me responda com sinceridade: quantas vezes você já acompanhou um debate sobre detalhes do desenho de privatizações. Pois é uma pena. Como é usual no campo da política pública, o que realmente importa está nos detalhes.

3) É preciso estabelecer com clareza o que está sendo privatizado

A palavra “privatização” tem um significado diverso. Uma venda de aeroporto não tem nada a ver com a venda da Eletrobras, que não tem nada a ver com a gestão de museus através de organizações sociais. Para cada um desses casos, os termos de uma boa discussão precisam ser diferentes.

Não é correto, por exemplo, dizer que o setor de ônibus foi privatizado pelo Estado brasileiro. A operação dos ônibus foi. São coisas diferentes: preço, rotas, terminais, quase todos os aspectos do produto seguem determinados pelo governo.

Especialmente à esquerda, esse uso amplo da palavra “privatização”  é usado como arma política. Doações privadas a universidades públicas são apenas um exemplo do que, embora envolva a relação entre Estado e setor privado, certamente não se trata de privatização.

Mesmo um sistema de vouchers não privatiza a educação pública. Ele privatiza a gestão burocrática da escola, se muito. A escola precisa cumprir inúmeros ditames do governo em troca do dinheiro público. O Estado não sumiu da relação.

Nenhuma conversa boa pode prosseguir sem que se estabeleça exatamente o que está sendo privatizado. Caso contrário, ambos usaram a mesma palavra sem se referir às mesmas coisas.

4) Dá pra misturar privatização com interesse público

O IMPA, escola de ensino e pesquisa em matemática no Rio de Janeiro, talvez o melhor centro de ensino superior do país, não segue a um modelo de negócios lucrativo, mas a padrões de excelência em pesquisas sem qualquer utilidade prática de curto prazo.

Há alguns anos, o IMPA é gerido por uma organização social privada, que não contrata por concurso, não faz licitações, tem salários determinados por negociação privada e recebe milhões em doações privadas. Recebe, também, dinheiro público, através de um contrato com o governo federal que exige que o IMPA não cobre mensalidade, por exemplo. O Estado ainda está presente, mas não é responsável pelo dia-a-dia da escola.

A elogiada rede de equipamentos culturais do governo de São Paulo é gerida de maneira análoga. Uma organização privada recebe financiamento público e faz a gestão de espaços como o Museu Catavento, Museu do Futebol, Biblioteca Mário de Andrade, entre outros.

Um fato pouco comentado sobre a gestão de Haddad como prefeito de SP foi sua privatização parcial da oferta de creches. No centro da sua política educacional estava o pagamento a organizações privadas que geriam a creche com financiamento público.

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O interesse público não se limita às privatizações que envolvem ONGs. No caso das concessões de infraestrutura, empresas privadas se comprometem a investir bilhões de reais num ativo que voltará a ser do governo no futuro. Quando uma empresa concessionária dobra o tamanho de um aeroporto, ela está investindo no patrimônio que voltará a ser do Estado em alguns anos. Além disso, fazem investimentos que o poder público não teria condição de bancar.

O desenho ajuda, mas boa parte das privatizações atende de alguma forma ao interesse público. Não é uma prática vil, dinheirista, representando a submissão ao interesse privado. Pelo contrário: se bem desenhada, pode ser uma ótima ferramenta na busca por justiça social.

5) No contexto atual, qualquer governante privatizaria

Nos últimos anos de governo, Dilma só falava em privatizar. Ciro Gomes disse que não tinha medo da palavra. Não é por acaso: privatizar, no momento, é uma necessidade. Não faz sentido tratar as concessões de aeroportos por Bolsonaro como crime imperdoável. Concessões como essa estariam na agenda de qualquer presidente.

Apesar de não ser uma boa estratégia para redução do déficit, privatizações permitem alguma arrecadação de curto prazo. Esse dinheiro é essencial para a situação do Estado brasileiro, que só pode ser resolvida por reformas de médio e longo prazo. É analgésico numa conjuntura tão dura.

Mas privatizações são uma necessidade principalmente por outro motivo: o Estado brasileiro não tem dinheiro para investir. Nas últimas décadas, os investimentos foram sendo progressivamente engolidos pelo gasto corrente com previdência, folha salarial, entre outros. Hoje, as despesas constitucionalmente obrigatórias já superam a arrecadação líquida. Não sobra dinheiro para investir e a situação não será resolvida no curto prazo, pois exige reformas constitucionais que demoram pra sair.

Outro fator de incentivo às privatizações é a crise. Além de faltar dinheiro pra investir no longo prazo, não há espaço no orçamento para políticas de estímulo à economia no curto prazo. As concessões de infraestrutura são úteis por isso. Em grande parte dos contratos, há investimentos obrigatórios já nos primeiros anos, que envolvem grande contratação de mão de obra.

Em resumo, há uma confluência de fatores que praticamente obriga os governantes brasileiros a privatizar. O deputado que pediu o fuzilamento de FHC agora é presidente e quer privatizar. Sinal dos tempos.

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