Quando as pessoas recebem um diagnóstico de esôfago de Barrett por biópsia de uma endoscopia do esôfago, algo de que nunca ouviram falar, elas se sentem impelidas de pesquisarem sobre o tema. Alguns aspectos deste tipo de achado as deixam preocupadas e angustiadas, entre eles o esôfago de Barrett (EB) ser uma condição pré-maligna, isto é, que predispõe ao câncer.
Muitas pessoas passam por esse problema e por isso é necessário um especialista tirar essa preocupação inicial explicando esta condição, a qual possui baixo risco de malignidade e possui tratamento que costuma ser efetivo geralmente.
Alguns fatos e números importantes
- O EB acomete cerca de 1% da população geral, e está associado ao refluxo gastro-esofagiano (conteúdo do estômago que sobe para o esôfago). Além do refluxo, existem outros fatores de risco que devem ser avaliados e/ou tratados, como excesso de peso, tabagismo e histórico de câncer.
- O EB, embora seja uma condição que predispões ao câncer, esse não se desenvolve na grande maioria dos pacientes.
- O EB tem tratamento que evoluiu muito nos últimos anos e costuma ser eficaz.
Leia abaixo aspectos para que você tenha domínio da situação e a conduza adequadamente.
Direto ao ponto: o EB é, afinal, um câncer?
A boa notícia é que o EB em si não é propriamente um câncer, uma neoplasia. Ele é uma metaplasia, uma condição pré-maligna que pode ou não se desenvolver em câncer dependendo de vários fatores. A chance de evolução para câncer em pacientes que possuem EB é de 0.5% ao ano.
O risco é maior para os que possuem EB com extensão maior que 3 cm (o chamado Barrett longo). Existe uma maior predisposição para quem fuma e possui perfil genético desfavorável (histórico familiar, predisposição genética).
Entendendo que a maioria dos casos com essa condição não desenvolve câncer, antes de tudo é necessário fazer um diagnóstico preciso, um mapeamento endoscópico de sua extensão e o grau de alterações celulares. Este exame endoscópio deve ser realizado de preferência por um especialista e com equipamento e técnica endoscópica específica (uso de um agente de realce - cromoscopia), além de biópsias seriadas protocolares.
Esta investigação pode incluir, portanto, a realização de uma nova biópsia por endoscopia. Além disto, nos casos com alterações celulares (o que chamamos de displasia) é importante avaliar o material de biópsia com cautela, com auxílio de um patologista especialista em gastroenterologia para confirmar o diagnóstico.
Foi mapeado e o diagnóstico foi confirmado? E agora?
O tratamento dependerá da extensão do EB e da presença ou não do que chamamos de displasia, a qual é uma alteração celular que requer atenção, pois quando em alto grau ele é considerado um início de câncer, superficial. Na confirmação de displasia, é indicado que o EB deva ser removido.
A técnica mais indicada é a endoscópica por ser menos invasiva, ou seja, não precisa cirurgia. Dentre as técnicas endoscópicas disponíveis, temos a ablação, a qual é uma espécie de cauterização superficial com intuito de descamar a área afetada.
A mucosectomia, uma técnica de “raspagem” mais profunda da mucosa do esôfago, também é empregada em determinadas situações. Ela proporciona uma remoção mais aprofundada, e consequentemente mais retirada de tecido e cicatrização mais acentuada.
Os casos de esôfago de Barrett acima de 3 cm devem ser avaliados com mais cautela, ao possuírem maior risco de progressão de doença.
Se não houver displasia o tratamento não envolve procedimentos específicos. É fundamental cuidar do fator causal, o refluxo gastro-esofagiano, bem como o sobrepeso para evitar sua progressão. Algumas vezes o refluxo gastro-esofagiano compensa ser tratado com um procedimento antirreflexo (fundoplicatura).
O tabagismo e o consumo de álcool também atuam como fatores de risco para o agravamento do esôfago de Barrett. É necessário um acompanhamento por endoscopia, uma vigilância, na qual se espera uma estabilidade da lesão, sem a necessidade de procedimentos adicionais. Existem testes moleculares a serem feitos no material de biópsia que podem ajudar na decisão do tratamento, porém é pouco acessível no momento.
Se há um tratamento endoscópico com bons resultados, porque não eliminar o esôfago Barrett em todos os casos, e não apenas os com displasia?
Esta é uma questão em evolução. Até 2019 a indicação era apenas para displasia de alto grau. Hoje a indicação de ablação é para todos os casos de displasia, incluindo, portanto, a de baixo grau, e existe uma tendência de expandir essa indicação para os casos sem displasia com a vinda de testes moleculares.
O tratamento endoscópico não é empregado em todos os casos, pois o benefício do tratamento endoscópico de EB sem displasia não está bem estabelecido.
Como conduzir daqui para frente o esôfago de Barrett?
É fundamental cuidar do refluxo gastro-esofagiano e sobrepeso. Tomar medicação para tratamento do refluxo gastro-esofagiano. Eliminar o fumo e álcool. Avaliar a possibilidade de uma cirurgia anti-refluxo ou fundoplicatura (não é indicada para todos os casos). Uma doença do refluxo não tratada aumenta o risco de progressão do EB.
A maioria dos pacientes com EB não necessitam de procedimentos adicionais, porém necessitam fazer acompanhamento por exames endoscópicos periódicos.
Cuide da sua saúde. Faça um mapeamento do seu esôfago de Barrett e avaliação precisa do seu caso. Mesmo que você precise de algum procedimento, eles são minimamente invasivos e possuem bons resultados.
Um EB corretamente diagnosticado e tratado por um especialista com experiência leva a excelentes resultados, e ainda mais importante, os pacientes acometidos por EB conseguem ter uma vida normal.
Estudo de caso simulado: discutindo o cotidiano do esôfago de Barrett
Caso Fictício 1 - O Sr. LF tem 35 anos, está com sobrepeso, tabagista, sem doença prévia e foi fazer um exame endoscópico de rotina porque sentia azia e recorria à medicação pantoprazol para alívio dos sintomas. Não possui histórico de câncer em parentes de primeiro grau.
Em exame endoscópico recente foi encontrado uma área aveludada no esôfago, digitiforme estimada em 2 cm (classificação Praga C0M2). Foram feitas 4 biópsias em quadrantes (protocolo de Seattle) e estas demonstraram metaplasia intestinal (esôfago de Barrett), sem displasia. Havia também uma hérnia de hiato de 3 cm.
Este é um caso típico de esôfago de Barrett dito “de segmento curto – Short-segment Barrett”, o qual possui menos de 3 cm e acomete apenas um setor (não envolve a circunferência). Nele, o paciente fez o diagnóstico motivado pelos sintomas de refluxo, mas outros pacientes possuem essa condição sem sentir nada, sendo um achado de endoscopia.
Conforme as recomendações de sociedades médicas vigentes (vide referência), pode-se seguir este caso com uma nova endoscopia em 5 anos. Entretanto, vale mencionar que o exame deve ter sido feito com equipamento de qualidade, com quantidade de biópsias suficiente.
Faz-se necessário uma avaliação e combate ao sobrepeso e adotar medidas de tratamento para refluxo, principalmente os excessos de bebida alcoólica, gaseificados, chocolate, café, alimentação noturna. Importante encerrar o tabagismo.
Deve ser feita avaliação para uma eventual cirurgia antirreflexo (ou fundoplicatura). Caso não seja optado por cirurgia, deve-se manter o uso de pantoprazol em dose plena indefinidamente (manter o uso de medicação anti-refluxo).
Caso Fictício 2 – A Sra AB tem 63 anos e sofre de azia, com endoscopia prévia mostrando esofagite intensa há cerca de 15 anos. Não faz tratamento contínuo para esta condição e recorre a antiácidos quando não se sente bem. Nega tabagismo. Não possui histórico de câncer em parentes de primeiro grau.
Em exame endoscópico recente foi encontrado uma área aveludada no esôfago, circunferencial estimada em 4 cm (Praga C4M0). Não havia aspecto nodular ou tumoral. Foram feitas 8 biópsias em quadrantes (protocolo de Seattle) e estas demonstraram metaplasia intestinal (esôfago de Barrett), com displasia de alto grau. Havia uma hérnia de hiato de 2 cm.
Neste caso, temos um indivíduo com doença do refluxo gastroesofagiano de longa data. Quando o esôfago de Barrett ultrapassa 3 cm, ele é denominado de Barrett de segmento longo (“long-segment Barrett”). Ele se desenvolve ao longo de vários anos de exposição ao refluxo gastroesofagiano sem tratamento adequado.
Segundo as recomendações, uma vez confirmada a presença de displasia de alto grau por patologista experiente, está indicada a remoção endoscópica, onde se destacam as técnicas de ablação ou mucosectomia. Antes de proceder ao método, deve-se mapear o esôfago de preferência com endoscópio de alta definição para identificar áreas elevadas nodulares.
Se houver áreas nodulares e com biópsia mostrando apenas displasia, procede-se a mucosectomia. Na ausência de áreas nodulares, a ablação endoscópica por radiofrequência é o método de escolha. Adicionalmente, é fundamental adotar as medidas anti-refluxo, como avaliação e combate ao sobrepeso e eliminar excessos de bebida alcoólica, gaseificados, chocolate, café, alimentação noturna.
Embora a hérnia de hiato seja pequena, pode ser feita uma avaliação para cirurgia anti-refluxo (ou fundoplicatura). Caso não seja optado por cirurgia, deve-se manter o uso de medicação anti-refluxo indefinidamente. O caso deve ser acompanhado por endoscopias periódicas, mesmo após tendo sido realizada ablação.
Glossário
Mucosa – é uma camada que reveste internamente o tubo digestivo.
Transição esôfago-gástrica/ Gastroesophageal Junction – área anatômica que corresponde ao limite entre o fim do esôfago e o começo do estômago.
Linha Z – é uma linha vista na endoscopia que corresponde ao fim da mucosa do esôfago e o começo da mucosa do estômago. No esôfago de Barrett a linha Z está alterada.
Metaplasia – é uma área com alteração na superfície da mucosa, que pode ser gástrica ou intestinal (se for metaplasia intestinal com células caliciformes, chama-se de esôfago de Barrett).
Metaplasia juncional ou gástrical/ Junctional metaplasia – é um tipo de metaplasia (alteração da mucosa) composta por células gástricas que ocorre na transição esôfago-gástrica (para ser Barrett tem que ser metaplasia intestinal com células caliciformes).
Metaplasia intestinal/ Intestinal metaplasia - é um tipo de metaplasia (alteração da mucosa) composta por células intestinais que ocorre na transição esôfago-gástrica (para ser Barrett tem que ser metaplasia intestinal).
Displasia/ Dysplasia - é uma alteração celular que, quando em alto grau, é considerado câncer em estágio inicial, precoce, superficial.
Área de digitação ou Área aveludada – é uma área com alteração, que pode ter formato de um dedo (digital), cujo aspecto sugere metaplasia, e se for intestinal, trata-se de esôfago de Barrett. Precisa confirmação com biópsia.
Protocolo de Seattle/ Seattle protocol – protocolo de coleta de biópsias de áreas suspeitas para esôfago de Barrett.
Classificação de Praga/ Prague Classification – é uma classificação utilizada para graduar o esôfago de Barrett baseado no aspecto endoscópico (circunferência, extensão longitudinal)
Saiba mais: estado da arte e novas descobertas em esôfago de Barrett (ainda em estudo ou já sendo aplicadas)
Cromoscopia/ Chromoscopy – é um exame endoscópico onde se utiliza uma técnica para realçar a mucosa gastrointestinal, podendo ser virtual (luz polarizada) ou com uso de agentes (ácido acético)
Endoscopia de alta definição/High-definition endoscopy - é um aparelho de endoscopia com definição de imagem aperfeiçoada. Ela pode ser ótica ou eletrônica. A óptica é baseada em uso de lentes especiais. A eletrônica trabalha com espectros de luz e imagem. A magnificação é outro efeito de imagem com intuito de ampliar os achados da alta definição.
Ablação por radiofrequência/Radiofrequency ablation (RFA) – é uma técnica de cauterização por aumento de temperatura controlada por sensores que calculam a energia a ser entregue no tecido, causando dano superficial, restrito à área de interesse.
Marcadores moleculares em esôfago de Barrett/Molecular markers Barrett esophagus – são testes genéticos realizados em fragmentos de biópsias os quais dependendo do resultado pode caracterizar um risco aumentado para progressão de câncer. São especialmente úteis em indivíduos com Barrett sem displasia os quais não preenchem critérios para ablação endoscópica.
Referências
KHIEU M, MUKHERJEE S. Barrett Esophagus. [Updated 2024 Sep 2]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2024 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK430979/
WEUSTEN BLAM, et al. Diagnosis and management of barrett esophagus: european society of gastrointestinal endoscopy (esge) guideline. Endoscopy. 2023
SHAHEEN NJ, et al. Diagnosis and management of barrett's esophagus: an updated ACG guideline. Am J Gastroenterol. 2022
CLERMONT M, FALK GW. Clinical guidelines update on the diagnosis and management of barrett's esophagus. Dig Dis Sci. 2018
PALAVRAS-CHAVE: esôfago de Barrett, câncer de esôfago, pré-maligno, refluxo gastro-esofagiano, endoscopia, cromoscopia, ablação, diagnóstico, tratamento.
Biografia
Sobre o Dr. Eduardo Aimore Bonin
Com formação em gastroenterologia, cirurgia gastroenterológica e endoscopia digestiva, sou especializado em procedimentos endoscópicos avançados. Meu foco é em intervenções em doenças do sistema gastrointestinal como esôfago, estômago, vias biliares, pâncreas e intestino.
Sou graduado em medicina pela Faculdade Evangélica de Medicina do Paraná (hoje Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná) em 1997. Depois da graduação, completei residência reconhecida pelo MEC em cirurgia geral, seguido de especialização em cirurgia do aparelho digestivo no Hospital Nossa Senhora das Graças, concluído em 2000. Entre os anos de 2001 e 2002 obtive os títulos de especialista em Gastroenterologia pela Federação Brasileira de Gastroenterologia e em Cirurgia pelo Colégio Brasileiro de Cirurgiões. Em 2003 completei 2 anos de especialização em endoscopia digestiva pelo Hospital Sugisawa, certificado pela PUC-PR. Em 2006 obtive o título de especialista em endoscopia digestiva pela Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva.
Entre 2002-2009 estive em 3 ocasiões no exterior (Austrália, França) onde fiz cursos de aperfeiçoamento em cirurgia laparoscópica e digestiva, e endoscopia. Entre 2010-2013 tive a oportunidade de fazer 2 especializações no exterior (EUA e França), atuando em pesquisa e aprendizado de novas técnicas endoscópicas. Fui certificado pela Mayo Clinic e Université Aix-Marseille.
Entre 2005 e 2015 fui professor e sócio-fundador do instituto Jacques Perissat e curso de Pós-graduação em Cirurgia Minimamente Invasiva da Universidade Positivo, pioneiro no Brasil.
Em novembro de 2017 fui aprovado em defesa de tese de doutorado junto à UFRGS com orientação do Prof. Leandro Totti Cavazzola, cujo tema foi o desenvolvimento de um novo dispositivo magnético para gastrostomia.
Em 2022, entrei como sócio-investidor da Faculdade e centro de treinamento Scolla, onde atualmente participo de atividades de coordenação em ensino de cursos de aperfeiçoamento. Em 2022, fundei com o ilustrador médico Rodrigo Tonan a Mentovery, uma empresa (startup) com fins lucrativos dedicada à produção de conteúdo acadêmico-científico.
Atualmente atuo como médico em endoscopia digestiva no HC-UFPR desde 2015 (aprovado em concurso) e no Hospital Erasto Gaertner desde 2018. Nestes hospitais participo da formação de médicos e coordeno projetos de pesquisa na área de endoscopia digestiva e gastroenterologia.
Minha experiência como médico, educador, pesquisador me credencia a realizar praticamente toda a gama de procedimentos complexos factíveis em endoscopia digestiva.