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É natural que a proximidade do Natal desperte no público cinéfilo o desejo de ver filmes edificantes, esperançosos, com diversão para toda a família. Como o leitor deve estar acompanhando, aqui mesmo na editoria de Cultura da Gazeta do Povo temos recomendado várias obras nessa pegada feel good. Mas existem as produções com o Natal de fundo que vão na contramão do que se espera para o período e ainda assim merecem constar no cardápio. É o caso de A Caça, de 2012, disponível no catálogo do Prime Video.
Dirigido pelo dinamarquês Thomas Vinterberg, que começou a se destacar com Festa de Família (1998) e se consagrou de vez com Druk – Mais uma Rodada (2020), o filme narra a jornada de Lucas (papel do sempre ótimo Mads Mikkelsen), funcionário de uma escola infantil de uma pequena cidade, que se dá muito bem com a criançada, ama sua cachorrinha Fanny e sonha em trazer seu filho adolescente Marcus para morar em sua casa. A ação começa num mês de novembro e invade o período natalino, com as cenas mais tocantes ambientadas no dia 24.
Lucas é um sujeito tão bacana que uma das garotinhas do jardim de infância, Klara, se apaixona por ele. Ao cortar a relação platônica, Lucas abala a menina, que cria uma história capaz de coloca-lo atrás das grades. Ainda que tente voltar atrás na invenção, Klara já tinha disparado o gatilho, fazendo toda a escola e, depois, toda a cidade acreditar que Lucas era um abusador de menores. Outras crianças embarcam na conversa e fazem relatos semelhantes, algo muito próximo do que acompanhamos no Brasil na famosa cobertura da Escola Base.
Dignidade em meio à ruína
Claro que o mundo de Lucas entra numa espiral de ruína, que o afasta do emprego, compromete seus planos com o filho, pausa seu relacionamento amoroso e, o pior de tudo, causa um rompimento com Theo, seu melhor amigo e nada mais nada menos do que o pai de Klara. Mesmo conhecendo o caráter de Lucas, Theo deixa-se engolir pela paranoia que toma conta daquela sociedade e se afasta do “suspeito”. A sorte de Lucas é que outros amigos ficam do seu lado e que seu filho em nenhum momento desconfia que ele tenha feito algo errado.
O espectador se envolve com a história por ter certeza de que Lucas não merece passar por tamanha injustiça. Outro fato que engaja a audiência é que, apesar de deprimido pela situação, Lucas não baixa a cabeça e tenta tocar sua vida de forma digna, seja indo ao supermercado para comprar mantimentos, seja comparecendo à missa de Natal, sofrendo com perfurantes olhares condenatórios e violências mais pesadas. A Caça está no rol de filmes que possui mais de 90% de resenhas positivas no agregador Rotten Tomatoes e é considerado por muitos como o grande drama psicológico da década passada.
Certos aspectos de A Caça remetem ao manifesto Dogma 95, assinado por Vinterberg e Lars Von Trier quando ambos iniciavam suas carreiras. Esse manifesto pregava que os filmes da florescente nova geração de cineastas dinamarqueses não poderiam ter efeitos especiais, só deveriam ter o som captado no ambiente de filmagem e a câmera tinha de permanecer na mão do diretor, excluindo tripés e demais suportes. Essas castrações terminavam por valorizar as histórias contadas. Se elas não fossem boas, nada sustentaria os longas. Vinterberg foi se libertando dessas amarras (A Caça começa ao som da maravilhosa Moondance, de Van Morrison, algo que o Dogma 95 proibiria), mas nunca deixou de priorizar grandes histórias, cheias de dilemas morais e valorização da honestidade. É por isso que, mesmo que o tema seja pesado, A Caça merece entrar na fila de filmes a serem vistos ou revistos enquanto Papai Noel não vem. (Abaixo, um bom debate sobre a obra no programa Quarentena Cult, indicado para quem já a assistiu e quer pensar mais a respeito.)