A letra de Tua cantiga, de Chico Buarque, não agradou a um grupo de pessoas. Especialmente certas vozes feministas, que acusaram Chico de consagrar valores machistas nos versos “largo mulher e filhos/ e de joelhos/ vou te seguir”. Houve, notadamente nas redes sociais, manifestações contrárias a esses versos, mas houve também declarações que não viram neles nada demais.
É mais uma polêmica entre tantas que pontuaram a trajetória artística de Chico Buarque. Desde os anos 1960, a produção de Chico provoca amores e dissabores. Agora, teve seu talento de compositor contestado por vozes feministas que, conforme indiquei acima, impugnaram os versos de Tua cantiga.
Uma dessas vozes foi a cronista Flávia Azevedo, do Correio da Bahia, que assim se posicionou acerca dos versos da cantiga, em crítica publicada em 5 de agosto de 2017: “Não se trata de patrulhamento nem militância tosca. Mas quem controla sentimento [...]? Chico Buarque sempre se comunicou com a nossa subjetividade. E é a nossa subjetividade que está falando com ele agora. E a real é que esse mundo interno mudou. De repente, pra um monte de mulheres, ‘largo filhos’ soou tão romântico quanto um arroto no meio do beijo. Uma deselegância, uma sacanagem, uma coisa feia e desnecessária. A gente broxou com a narrativa de um amor covarde, com o canalha fantasiado de super-herói, com esse amante infantil e antigo, com esse tipo de amor... datado. Esse cara, esse personagem trazido por Chico (e tão conhecido entre nós) não faz mais sucesso. Porque a gente mudou e até o nosso romantismo está, sim, numa outra vibe”.
Para a cronista, como os que entoaram lá atrás, nos anos 1960, abrigados em concepções da vanguarda, Chico ficou para trás, não se modernizou. Mas Chico, musicalmente, sempre aderiu à tradição, às formas populares, praticando, por exemplo, desde o início de sua carreira, o samba. Chico nunca esqueceu o passado. Esse foi sempre, como nos anos 1980 avaliou Caetano Veloso, o seu jeito: o de “andar pra frente arrastando a tradição”. Esse Chico que busca a tradição para, sorrateiro, se inserir no atual, parece não ter sido percebido pela cronista Flávia Azevedo. Que, como declarado, queria em Tua cantiga um personagem de “sucesso” junto à nova mulher. Mas uma coisa importante que Chico quis destacar na cantiga, como adiante procurarei mostrar, não foi realmente a nova mulher, mas o velho homem. O machismo, curiosamente, nos últimos tempos, e apesar da revolução feminista, em certos contextos se alargou. E esse contraste é bem moderno e atual. É o contraste, como pontuou Antonio Candido nas preliminares do ensaio O direito à literatura, entre o racionalismo do conhecimento e o irracionalismo do comportamento.
A crítica aos versos de Tua cantiga foi tão contundente e tão explorada nas redes sociais pelos opositores das opções políticas de Chico, que o compositor resolveu responder. Foi registrado no Facebook oficial do artista o seguinte comentário, que emula um diálogo entreouvido num supermercado:
— Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante?
— Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante.
Foi uma resposta razoável. Na minha modesta posição, uma resposta incompleta, uma defesa meio que atropelada. Porque, se lida justamente sob o prisma do machismo, como irei já verificar, a letra tem força, é muito atual.
Mas destaco também aqui duas vozes que, antes desse post no Facebook de Chico, se levantaram em defesa do compositor e de sua cantiga. A primeira é a da própria irmã do compositor, Ana de Hollanda, que, entre outras coisas, afirmou, também no Facebook: “[...] Imagino que as puritanas neofeministas nunca ouviram falar em Simone de Beauvoir, o que não deve vir ao caso, porque esta também pertence ao século passado. Mas condenam o autor da frase [‘largo mulher e filhos’], sem terem se dado conta de que os personagens das canções de Chico — aliás, de qualquer ficcionista — não costumam ser autobiográficos. Que o compositor descreve situações e sentimentos corriqueiros, e até comuns, concordando ou não com eles. E que a criação artística é livre, ao contrário de uma tese acadêmica”.
A segunda voz que se pronunciou em defesa de Chico foi Caetano Veloso, que, também num post no Facebook, valorizou, entre outros aspectos, o rimário de Tua cantiga: “...as rimas que mexem fundo com a gente são as inaparentes, as que se dão nas consoantes das palavras finais dos penúltimos versos das estrofes: suspiro/ligeiro; nome/perfume; lenço/alcanço; filhos/joelhos; nega/cantiga. ‘Minha nega’ e ‘cantiga’ são chave de ouro. O ritmo de lento afoxé sob essas formas verbais aprofunda a sensação de velha brasilidade que só se supunha morta porque fazia tempo que Chico não vinha com uma música”.
Estrofe por estrofe
Dito isso, penso que é bom esclarecer um pouco que tipo de poeta é Chico Buarque. Seguramente, não estamos falando de um poeta qualquer, mas de um nome que, de início identificado apenas com o segmento da MPB, logo se projetou para a série literária, compondo textos que o colocaram perto ou mesmo ao lado de grandes da literatura nacional.
Sabe-se que o compositor consagrado dos anos 1970 chegou a ser vinculado à chamada canção de protesto. Ser compositor de protesto, àquela altura, aos olhos dos críticos mais circunspectos, não era boa coisa. Protesto, no campo da MPB, era sinônimo de produção de ou para a circunstância. Ou seja, postulava-se que, passado o momento histórico, perderia força a canção de Chico, e a de alguns outros, que combatia a ditadura; a canção com as metáforas da sombra — ou a canção de repressão, como foi chamada por Adélia Bezerra de Meneses,1 no seu bom estudo sobre poesia e política em Chico Buarque. Assim, a canção de protesto, ou de repressão, era tida como uma canção datada, composta para responder, repiso, ao regime militar. Chico não teria força para transpor aquele tempo histórico — ou seja, não ficaria.
Anazildo Vasconcelos da Silva rebateu essa tese. Em estudo publicado em 1974 sobre a poética de Chico,2 Anazildo afirma, a respeito da relação entre as letras da MPB e a poesia brasileira: “Podemos traçar, em linhas gerais, um paralelo entre a letra poética da MPB e a poesia brasileira, dos anos 50 para cá, e mostrar, através do exame de diferenças e proximidades, como lentamente a letra poética vai ganhando em qualidade artística, até uma equiparação com a melhor poesia moderna”. Anazildo entende que as letras da MPB passaram “a exigir do estudioso da literatura e do crítico literário brasileiro uma atenção maior, inclusive necessária em termos de conhecimento de poesia brasileira moderna”. E caracteriza a poesia de Chico como “universal” e não “circunstancial”.
Chico Buarque, portanto, e repetindo, não é um poeta qualquer. E sabe o que está fazendo no que diz respeito à representação da mulher, de cuja condição, conforme concluí em meu trabalho de mestrado, é um pensador. Pelo que sei, Chico não mudou. Prossegue sensível às minorias, às causas sociais, recortando nossas mazelas, nossos contrastes — como está na também recente Caravanas.
Vou agora verificar o que de fato ocorre com Tua cantiga, num esforço para tentar mostrar certos elementos que estão na base da construção de sua letra.
A letra de Tua cantiga é simples, registra as investidas, as promessas e sobretudo os exageros do sujeito que fala na canção. E parece ser a hipérbole, assim como a antítese estrutural (o antagonismo sujeito poético x parceiro da seduzida), que está na base da construção da letra.
A letra trata de três personagens — o sedutor-amante, que é o sujeito poético, a seduzida e o parceiro da seduzida (de pronto apontado como o rival do sedutor-amante). A única voz que se manifesta, assertiva, e sobretudo, reafirmo, exagerada, é a do sedutor-amante.
Não é difícil perceber as notas de exagero do sujeito poético nas várias estrofes da letra. Logo na primeira estrofe, a um simples “suspiro” de saudade gemido pela seduzida, esse sujeito, e não sendo tal suspiro um suspiro qualquer, mas uma espécie de alarde, vai “ligeiro” consolá-la. Mas o acesso à seduzida não é tão fácil, as coisas não poderão correr tão frouxas ou “ligeiras” assim, pois se trata de alguém comprometida. Mas o sujeito poético é assertivo, destemido, indicando que em breve estará aos pés dela — nada o repelirá.
Na segunda estrofe, o parceiro da seduzida é nomeado como “vigia”. Trata-se de um “vigia” que, enciumado, ou em “alvoroço”, como está dito, desloca-se estrategicamente com a moça para a distância, protegendo-a, e protegendo-se, das investidas desse sedutor arrebatado, afoito. Mas a simples evocação do nome do sedutor (na bela imagem “basta soprar meu nome/ com teu perfume”) poderá atropelar as coisas, atraindo esse sedutor, que irá de pronto — e uma vez mais — em busca da seduzida, a distância não contando. Continuam tão simples assim as coisas? Um indivíduo parte com a companheira, o outro, um sedutor devotado, logo em seguida vai atrás deles para capturá-la? Há, de novo, uma nota de exagero, um destemor ou mesmo presunção por parte do sujeito poético.
Mas a presunção não para por aí. A fala do sedutor, em certo instante, acorda uma imagem incisiva, que vai estar na terceira estrofe: a de que “não têm mais fim” as noites da seduzida junto do companheiro dela, agora chamado de “desalmado”, pois a faz “chorar”. Noites que “não têm mais fim” hirperboliza o sofrimento da seduzida ao lado do outro. E, por antítese, enaltece a figura do sedutor, assegurando que com este as noites serão aprazíveis, venturosas. E o enaltecimento vem ainda na forma de outra cortante (e bela) imagem: o sujeito poético, para aplacar o padecimento da seduzida, e mais uma vez destemido, arrojado, sem levar em conta a companhia da moça, pede-lhe que “deixe cair um lenço” — o lenço como senha indelével da presença dela na vida dele — que ele a alcançará “em qualquer lugar”. Novamente, não estão difíceis as coisas para o sujeito poético — está reeditado um padrão que informa que esse sujeito é desimpedido, está solto para ir e vir, para ir ao lugar em que a seduzida está, e, sem qualquer reação por parte do rival, tê-la à sua disposição. Fácil assim.
Mas aí vem o momento mais agudo desse inventário de imoderações: aquele em que o sedutor promete largar “mulher e filhos” para seguir a seduzida. Aqui o exagero se inscreve ainda mais forte na imagem que carrega de tons dramáticos a forma de o sedutor seguir a seduzida: “de joelhos”. Se for permitida uma analogia grotesca, e certamente desvirtuosa, porque, em sendo literal, anula a figuração dos versos, eu diria que deixar “mulher e filhos” imprime de fato feridas menos abertas do que ir “de joelhos” atrás da amada. Terrível penitência de um descomedido sujeito poético...
Na quinta estrofe, sempre carregando nas tintas do exagero, o sujeito poético assegura que a seduzida, na residência que eventualmente possam equipar, será a “rainha”. Entende que a seduzida lhe poderá ser talvez “cruel” — e que ele, mesmo assim, será ainda “mais feliz”. O expresso masoquismo, neste último caso, aparece também pontuado pelo exagero. E, sexta estrofe, para não interromper de vez o sono da seduzida, outra nota imponente, o sujeito poético promete pisar “em plumas” todas as manhãs ao despertá-la. Na nona estrofe, o sedutor, por assim dizer, duplica-se nos exageros, ao assegurar que terá “ciúme” até dele mesmo, ao abraçar a seduzida diante do espelho. Por fim, décima estrofe, nesse elenco de exageros entre palatáveis e desmesurados, e jogando para as palmas da seduzida, e sempre sem ter em conta o parceiro dela, o sujeito poético se autodeclara o definitivo amante da moça, prometendo-lhe paixão ainda mais intensa: “teu amante/ sempre serei/ mais do que hoje sou”. E conclui, ainda uma vez um registro descomedido, em forma de comparação: “ou estas rimas/ não escrevi/ nem ninguém nunca amou”.
Portanto, a figura principal que Chico Buarque empregou para compor os versos de Tua cantiga foi a hipérbole. A hipérbole pode vir recatada, mas também retumbante. Pode repousar no limite, mas também transbordar as margens do verso. Castro Alves transborda em seu Navio negreiro: “Astros! noites! tempestades!/ Rolai das imensidades!/ Varrei os mares, tufão!...”. Carlos Pena Filho, em As dádivas do amante, também transborda: “Deu-lhe o azul que o céu possuía/ Deu-lhe o verde da ramagem,/ Deu-lhe o sol do meio dia/ E uma colina selvagem./ [...]/ Deu-lhe o exato momento/ Em que uma rosa floriu/ Nascida do próprio vento;/ Ela ainda mais exigiu”.
Em Tua cantiga, como a seduzida tem um companheiro, é comprometida, ao dar ênfase, o sujeito poético, às suas próprias ações, autorreputando-se, a cada estrofe, o parceiro mais que apropriado para promover o contentamento, para dar o que de bom e de melhor a moça precisa, decorre daí a costura de uma outra figura importante no corpo do texto — a já indicada antítese estrutural, envolvendo o sujeito poético xo companheiro da seduzida. O sujeito poético aparece como índice do afeto, da felicidade — mostra-se um amante diligente, fervoroso; o seu rival é signo da desdita — patrulha a moça e é um “desalmado”. Marcando bem o texto com a hipérbole3 e a antítese, Chico Buarque cria essa imagem de um tipo mundano sedutor, transgressor de regras.
Mas isolemos rapidamente a polêmica expressão “largar mulher e filhos”. Se visto literalmente como alguém que, de forma irresponsável, “larga mulher e filhos” para ficar com a amante, o sujeito poético é um machista, sim, pois dele é destacado o modus operandi de um sedutor que faz de tudo, inclusive formular exageros, para preservar uma relação em cima de promessas. Um tipo de sedutor que tece seus versos retumbantes para pavimentar a conquista. Tipos assim estão por aí, atraindo mulheres com uma retórica fácil, envolvente.
Portanto, longe de ser machista, a letra de Chico denuncia o machismo. Diz de um tipo que se conduz pela eloquência, pela retórica lisa, antes de se conduzir pela autenticidade. Um tipo que, transitando entre a ordem e a desordem, e para lembrar Antonio Candido, opera nos interstícios. Ou melhor, opera com a malandragem, aquela que não respeita o código vigente (o que dita que uma mulher comprometida não deve ser seduzida, e por alguém também, e declaradamente, comprometido e que se vale de promessas e traquejos verbais).
Portanto, com esse sedutor-machista, que age com a mesma malícia e desfaçatez dos personagens da Ópera do malandro, e embora em outro diapasão, ouso dizer, é do malandro, mais uma vez, que Chico Buarque está tratando.
1 MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Hucitec, 1982.
2 SILVA, Anazildo Vasconcelos da. A poética de Chico
Buarque. Rio de Janeiro: Sophos, 1974.
3 Não priorizei no presente ensaio essa abordagem, mas Tua cantiga parece dialogar também com o Trovadorismo. O sujeito poético da canção é um tipo que, ao se submeter do modo que se submete à seduzida, ao atender aos caprichos dela (“quando teu capricho exigir/ largo mulher e filhos/e de joelhos/ vou te seguir”), torna-se uma espécie de vassalo que lembra levemente o sujeito poético da cantiga de amor. Na cantiga de amor, o sujeito poético, posto socialmente em patamar inferior (não seria bem o caso da canção de Chico), e como esforço de sedução, procurava mobilizar a atenção da amada inacessível com o emprego de uma linguagem que, além de enaltecer os predicados físicos, morais e sociais da seduzida, atestava e/ou tonificava as penas de amor desse sujeito poético. Para realçar tais penas, partia para metáforas que configuravam a eloquência de um sujeito intenso e que sempre idealizava a sua amada (que não raro era uma mulher comprometida/casada). Partia, portanto, em certos torneios, para o emprego da hipérbole. E é ainda de se perguntar: o sujeito poético de Tua cantiga, que é um amante ausente, que se encontra afastado da amada, não a estará também idealizando? Trata-se de uma relação real ou imaginária?
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