Numa troca de e-mails, o jornalista Plínio Fraga falou com a Gazeta do Povo sobre a biografia “Tancredo Neves, o Príncipe Civil” (Objetiva, 648 páginas, R$ 74,90), em que reconstrói a vida de um dos políticos mais importantes para o Brasil do século 20.
As qualidades do trabalho acerca de Tancredo de Almeida Neves (1910–1985) foram reconhecidas por figurões como Elio Gaspari — ele próprio responsável por pesquisar parte da história brasileira recente na série “Ditadura” — e José Murilo de Carvalho, autor da biografia “D. Pedro II”, que humaniza o imperador do Brasil.
Sobre Tancredo, escreve Plínio Fraga: “O político que ouviu o maior líder nacional dar um tiro no peito em 1954, que intermediou a sobrevida do presidente da República em 1961, que foi derrotado no golpe de 1964, que se empenhou por 21 anos na resistência pacífica ao regime, que costurou a derrocada da ditadura em 1985 aceitando eleger-se presidente sob regras não democráticas, este político [Tancredo] seria internado em estado grave às vésperas de ascender ao poder”.
Na conversa a seguir, Fraga fala sobre o trabalho na biografia e sobre como as transformações no Brasil “se deram mais à persistência do povo do que à consciência das elites”, parafraseando seu biografado.
Você poderia falar um pouco sobre como surgiu a ideia de escrever a biografia de Tancredo Neves?
O convite da editora surgiu em 2012. Escolhemos um personagem que merecia ter a vida contada sob um prisma independente e com as ferramentas mais modernas de pesquisa e narrativa jornalísticas. O distanciamento histórico já permitia fugir das hagiografias realizadas a respeito de Tancredo Neves.
Talvez esta pergunta se confunda com a primeira, mas: há quem diga que é muito difícil biografar um personagem quando você não gosta dele (na verdade, a frase é da Lillian Ross, falando sobre escrever perfis para a “New Yorker”). Como você se sente em relação a Tancredo Neves?
Concordo que seja verdade para alguns personagens. Para outros, o distanciamento é necessário e salutar. Acho que Tancredo foi uma das grandes figuras da política brasileira. Era um homem conservador, de notável capacidade de articulação e entendimento do cenário à sua volta. Tinha muitas qualidades, mas, como todos os seres humanos, tinha defeitos, contradições e imperfeições.
Entre as descobertas que fez enquanto trabalhava no livro, poderia citar uma das mais significativas para você?
O livro tem muitas revelações. Em tempos atuais, é muito relevante demonstrar como a redemocratização foi financiada de forma nebulosa como todas as campanhas presidenciais dali por diante.
Houve alguma informação particularmente difícil de conseguir?
O garimpo de informações é o que fascina na vida de repórter. Fiquei muito feliz de encontrar um rascunho feito à mão por Ulysses Guimarães [1916–1992] de uma conversa tensa que teve com Tancredo, a respeito da montagem do ministério, por exemplo. É quando a história se descortina à frente e é possível jogar luz num ponto obscuro. É a recompensa do repórter.
O que a história de Tancredo Neves diz (ou pode dizer) sobre o Brasil?
Como Tancredo dizia, as transformações no Brasil se deram mais à persistência do povo do que à consciência das elites. Acho que Tancredo interpretava frase do amigo San Tiago Dantas, companheiro de ministério parlamentarista, que dizia que, no Brasil, "o povo, enquanto povo, é melhor do que a elite, enquanto elite". O tamanho da desigualdade brasileira e a falta de um projeto nacional para reduzi-la confirma isso.
Quais foram a maior qualidade e o pior defeito de Tancredo como político?
Capacidade de ouvir, tenacidade e visão ampla do país são qualidades indiscutíveis. Como defeitos, o atrelamento a práticas políticas antigas como resultado de um pragmatismo extremo e a dificuldade de percepção do novo e das reconfigurações aceleradas da vida social.
Poderia citar um ou dois personagens que se destacam na história de Tancredo?
Getúlio Vargas foi sua maior influência política. O estampido do tiro com que Getúlio se suicidou influenciou Tancredo por todo o sempre e de maneira profunda.
Poderia falar um pouco sobre essa influência?
Tancredo era um deputado federal em primeiro mandato, com pouco mais de 40 anos, quando começou a conviver com Getúlio, a partir de 1951. Essa convivência, em tempos atribulados, foi sua escola de formação. Tancredo gostava de lembrar que a camisa ensanguentada de Getúlio ajudou a eleger JK [Juscelino Kubitschek] e adiou por dez anos o golpe militar. A história lhe dá razão.
Por fim, Jorge Bastos Moreno disse, no jornal “O Globo”, que Aécio e Andrea Neves desonraram a memória do avô ao se envolverem em esquema de propinas. Qual é a sua opinião?
Herdeiros em política, genéticos ou não, por razões diversas traem o legado que receberam. Algumas vezes para se modernizar, outras para se beneficiarem, como foi o caso. É lamentável, mas não surpreendente.
O pragmatismo de Tancredo seria à prova da corrupção que move hoje a política nacional?
O grau de corrupção atual está em patamar impensável para a era de Tancredo. A corrupção profissionalizou-se, sofisticou-se a ponto de transformar ladrões do passado em reles batedores de carteira.
Trecho de “Tancredo Neves, o Príncipe Civil”, de Plínio Fraga.
Em 29 de fevereiro de 1984, um mar de gente se aglomerava no centro de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Um comício se realizava na simbólica praça da Estação. Faltava menos de uma semana do dia bissexto até o Carnaval. A festa tinha pouco a ver com a celebração profana, mas se associava a ela em ímpeto de fé. Pedia as eleições diretas para presidente da República. A última havia ocorrido 23 anos antes. Quase uma geração inteira fora cerceada na escolha do mandatário principal do país. Solstício de inverno que produziu a mais longa noite de autoritarismo.
Tancredo de Almeida Neves estava suado ao descer do palanque. Tinha às mãos um lenço branco. Vestia camisa social clara, com as mangas cuidadosamente arregaçadas, calças cinza, sapatos pretos. Era um homem miúdo. Media 1,60 metro.
— Ele me pareceu maior no palanque — eu disse ao amigo que me acompanhava.
— No palanque, ele é gigante — respondeu-me o jornalista Carlos Eduardo de Oliveira, repórter do Estado de Minas.
Não me lembro do discurso com o qual encerrou aquele comício. A memória só guardou a entonação forte da sua abertura na praça da Estação: “Mineiros...”. Nenhuma palavra a mais ficou retida. Somente o eco daquele chamado. Um ano depois, aos trancos e barrancos, uma nova ordem se constituiria. O chamamento atingiria a todos os brasileiros.
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