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Alias Grace chega à TV na hora certa

Cena do seriado Alias Grace, disponível na Netflix | Divulgação
Cena do seriado Alias Grace, disponível na Netflix (Foto: Divulgação)

Vinte anos atrás, uma adolescente precoce fez um pedido surpreendente à escritora Margaret Atwood: ela havia acabado de ler "Vulgo Grace", da escritora, e ficou fascinada pela história verídica de Grace Marks, imigrante irlandesa do século 19 e empregada doméstica que se tornou uma "celebridade assassina" em Toronto. E mandou uma carta a Atwood solicitando os direitos de filmagem.

Ela era Sarah Polley, mais tarde famosa como estrela infantil canadense de "Road to Avonlea", do canal Disney, e anos antes de se tornar roteirista e diretora de filmes independentes como "Longe Dela" e "Entre o Amor e a Paixão". Atwood recusou. Obviamente.

"Ela tinha 17 anos! Não acho que tivesse meios para isso", disse. 

Agora, aos 38 anos, Polley vê sua grande aposta se concretizar: é roteirista e produtora da adaptação do livro para uma minissérie do Netflix.

Depois de décadas de tentativas – tanto Jodie Foster quanto Cate Blanchett se envolveram em vários momentos –, "Alias Grace" chega em um momento de sucesso para Atwood.

Em setembro, a adaptação do Hulu de outro livro da escritora, "O Conto da Aia", tornou-se a primeira série de um serviço de streaming a ganhar um Emmy por melhor drama; as icônicas capas de vermelhas que as aias são obrigadas a usar se tornaram trajes populares; e a escritora de 77 anos de idade é uma estrela da internet. (Atwood tem 1,77 milhão de seguidores no Twitter.)

"O Conto da Aia", cuja segunda temporada está sendo filmada em Toronto, retrata um futuro próximo distópico, onde as mulheres são subjugadas por uma elite ditatorial. "Alias Grace", entretanto, é uma série de época em seis partes baseada no mistério insolúvel de uma pobre criada (Sarah Gadon) que, ou encobriu os assassinatos de seu chefe e sua governanta/amante (Anna Paquin), ou foi sacrificada por moralistas vitorianos por ser um pouco livre demais, um pouco desejável demais.

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As duas obras apresentam o olhar inabalável de Atwood às restrições, sociais e literais, que controlaram as mulheres através da história. Com o clima político tempestuoso que continua a sacudir os EUA, os romances de vinte anos da escritora canadense têm o efeito de críticas contemporâneas: em "Alias Grace", questões do século 19 como o sentimento anti-imigração, o aborto e a guerra de classes parecem subitamente atrair fortes reações.

"O Conto da Aia nos dá uma janela para um futuro possível, no qual os direitos das mulheres são abolidos. Alias Grace nos mostra como as coisas eram antes de termos quaisquer direitos. O passado e o futuro são muito importantes neste momento em que os direitos femininos estão cada vez mais precários e frágeis", disse Polley

Em meados deste ano, durante o café da manhã em um restaurante perto de sua casa em Toronto, Polley descreveu como a personagem Grace nunca saiu de sua imaginação. Seu metadocumentário autobiográfico de 2012, "Histórias que Contamos", começa com uma citação de "Vulgo Grace", lida pelo pai de Polley. ("Quando você está no meio de uma história, não é uma história, é apenas uma confusão".) Esse filme, sobre a descoberta de um segredo de família, confronta o desconhecido e a natureza flutuante da tradição familiar. Grace, na obra de Atwood, também é mutante, pois há uma nebulosidade em relação à sua culpa ou sua inocência.

"Era esperado das mulheres daquela época – na verdade, de qualquer época –, a supressão de certas partes da personalidade, de certas reações. O que acontece então com toda a energia e toda a revolta? O que fazer quando se é impotente? A ideia de ter mais de uma identidade, a face que você mostra para o mundo e a que está profundamente escondida, me cativou", disse Polley. 

Quando os direitos de filmagem foram oferecidos, em 2012, Polley aproveitou. Passou seis horas reunida com Atwood. "Ela entendeu que a ambiguidade era a coisa mais importante, algo complicado em um filme. Grace foi condenada como cúmplice porque não revelou nada. Nunca soubemos, e ela nunca disse. Agiu como uma daquelas telas em branco onde os comentários de todos se projetam." Atwood aprovou as habilidades de ambivalência da cineasta, e Polley pagou pelos direitos com o próprio dinheiro.

Mas os adiamentos continuaram: Polley teve uma filha, e depois outra. Ela escrevia enquanto as meninas dormiam, mas foi forçada a engavetar o projeto quando um extintor de incêndio caiu na sua cabeça em um centro comunitário, o que a deixou com uma concussão. "Meu cérebro funciona mais lentamente agora, então talvez o que produzo como escritora é mais rico. Ou talvez não. Mas não consigo mais ser multitarefa, graças a Deus." 

Minissérie

No começo, tentou adaptar a obra em um longa-metragem, mas, por não querer perder a densidade do livro, decidiu fazer uma minissérie. E, por ser das fileiras do cinema independente, Polley não sabia que, para a TV, poderia ter convocado outros escritores para ajudar no roteiro. Em vez disso, escreveu todos os seis episódios sozinha e decidiu não dirigir. "Não conseguia vê-la na minha cabeça. Há cenas que escrevi que nem saberia começar a filmar. Amo esse livro e não queria estragá-lo, mas achei que acabaria fazendo isso."

Polley procurou uma diretora que admirava, Mary Harron, que trabalhava na TV ("Segredos do Paraíso", "Constantine"). No cinema, Harron é conhecida por filmes de época, mas não do tipo que necessita de espartilhos, e dirigiu filmes cult cheios de sangue como "Um Tiro para Andy Warhol" e "Psicopata Americano".

"Só Sarah Polley me pediria para fazer isso. Nós duas estamos interessadas no que é ou não é verdade. Acho que ela gosta de vários filmes meus porque eles têm personagens com toques de loucura. E sabia que eu não tentaria fazer -Downton Abbey-. Eu não queria embelezar, mas realmente mostrar uma sociedade brutal, cruel, orientada por classes", disse Harron

A CBC, emissora pública do Canadá, entrou imediatamente no projeto, mas era preciso um parceiro que cobrisse o orçamento de US$25 milhões. O Netflix, com um número cada vez maior de produções para abastecer seu apetite insaciável por conteúdo original, assinou rapidamente.

"Elas vieram com uma visão muito clara, muita paixão e 500 páginas escritas", disse Elizabeth Bradley, vice-presidente de conteúdo do Netflix.

Questões sociais

Polley não dirigia há cinco anos e não participava de um filme desde 2010, preferindo passar seu tempo com as filhas e trabalhar seletivamente.

Seu desejo de voltar agora pode também ter começado com seu envolvimento no passado com questões sociais espinhosas que ainda não foram resolvidas. Ela já se pronunciou contra o sexismo desenfreado nos sets de filmagem e contra crianças atuando. Na sequência das acusações de agressão sexual contra Harvey Weinstein, escreveu uma matéria de opinião para o New York Times. Nela, Polley se recorda de que, aos 19 anos, quando era uma jovem atriz, Weinstein lhe ofereceu o que descreveu como uma "relação muito próxima", observando como elas haviam beneficiado outras atrizes. Polley não quis saber.

"Me livrei facilmente. Antes, não houve um momento em que alguém se importasse com o que aquelas mulheres tinham a dizer, quando elas não seriam ridicularizadas por causa de suas revelações, onde elas não seriam vistas como choronas ou estridentes ou revoltadas." 

Então ela volta às palavras de Atwood sobre a empregada doméstica vitoriana denegrida, talvez envolvida em um assassinato, ou que talvez tenha sido forçada a isso.

"Em uma fala, o Dr. Jordan diz algo como ‘eu me pergunto quanta raiva sublimada ela deve carregar, essa criança assediada em cada esquina’. E me pergunto a mesma coisa. Não penso simplesmente em uma empregada doméstica do século 19. Penso nas mulheres de todas as áreas, todos os dias."

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Publicado por Ideias em Domingo, 22 de outubro de 2017

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