Ludwig Pfeufer nasceu em 1924, no coração da Alemanha, em uma grande família judia ortodoxa ali assentada há séculos. Era uma região de forte presença judaica, onde pogroms já eram uma tradição desde o tempo dos Cruzados. A despeito da participação da família Pfeufer no exército e nas guerras como bons alemães, sofriam ameaças antissemitas desde sempre. Sabiam que sua segurança era ilusória. Em 1936, pouco depois de Hitler subir ao poder, a família toda emigrou para a então Palestina, território sob mandato britânico. Os Pfeufer falavam alemão em casa, mas já eram fluentes no hebraico antes de emigrarem, o que ajudou Ludwig, com 12 anos, a adaptar-se rapidamente à nova nacionalidade.
Com 15 anos incompletos, o garoto integrou-se ao Palmach — força de elite da Haganá, exército underground de uma nação que ainda não tinha status de estado. Em 1939, com o advento da Segunda Guerra Mundial, alistou-se no exército britânico. Foi nesse período que, ao ajudar a desvirar uma biblioteca ambulante tombada, encontrou livros de poesia de Auden, Dylan Thomas e Eliot e descobriu um mundo novo. A aproximação da poesia causou mudança tão importante em sua vida que adotou um novo nome, Yehuda Amichai — “Meu povo vive”, em hebraico, adequado por ser ao mesmo tempo socialista, sionista e otimista, segundo o próprio autor.
Yehuda Amichai lutou por seus ideais na Guerra da Independência de Israel, deflagrada pelos países árabes após a fundação do Estado judaico de acordo com resolução da ONU de 1947. Como todos os israelenses, participou ainda das guerras do Sinai (1956) e de Yom Kipur (1973), mas desde a década de 1960 já era visto como o mais importante poeta israelense de sua época. Ao andar nas ruas de Jerusalém recebia a atenção digna de um astro do futebol no Brasil.
Seus livros de poesia vendiam como best-sellers. Foi possivelmente o único poeta canônico lido por tantos, inclusive por um público não pertencente à comunidade literária, sem comprometer sua arte. A linguagem coloquial e frases memoráveis, como no poema a morte do meu pai, explicam parte deste sucesso:
Meu pai, de repente, de todos os lados
se foi para as suas lonjuras estranhas.
Foi embora pedir ao seu Deus,
Senhor, vinde em nosso socorro.
Deus já vinha, e como se esforçando,
pendurou o casaco no chifre da lua.
Mas o nosso pai, que saiu para trazê-Lo,
Deus prenderá com Ele para sempre.
Amichai publicou seu primeiro livro de poemas em 1955 e, em 1968, foi lançado seu primeiro livro em inglês, traduzido por Assia Guttman, amante de Ted Hughes, um dos maiores poetas britânicos do século 20. O reconhecimento nos círculos literários da Europa e Estados Unidos rendeu-lhe cátedras em diversas universidades americanas e várias vezes a nomeação para o Nobel.
Em solo nacional
Seus poemas foram traduzidos em mais de 40 idiomas (incluindo birmanês e nepalês), tornando-se o poeta do hebraico mais traduzido desde o Rei David. Poemas seus foram traduzidos para o português, mas só a partir de 2018, com o lançamento da antologia Terra e paz, é que os brasileiros passaram a conhecer melhor sua obra. São 80 poemas traduzidos diretamente do hebraico pela primeira vez no Brasil, organizados e traduzidos pelo professor Moacir Amâncio, do departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
O estilo de Amichai é muito mais complexo em hebraico devido às camadas de sentido oriundas da linguagem bíblica. Mas Amâncio, além de ensaísta, jornalista, escritor e poeta premiado (Jabuti, 1992), conhece como poucos no mundo o hebraico e o português, tanto como idiomas de origem como de destino em sua própria obra. Como ele mesmo explica, para organizar a antologia não seguiu uma ordem cronológica ou as fases do escritor, optou por seguir suas preferências pessoais. O resultado é harmônico e surpreendente.
Os poemas sobre Jerusalém, por exemplo, numerosos na obra de Amichai, não estão agrupados: aparecem aqui e ali como a lembrar o leitor de que é nesta cidade mítica que se localiza o núcleo de magma emocional de onde tudo aflora. Amâncio conservou intacto o subtexto de melancolia e leveza do conjunto, como no poema jerusalém:
Num telhado da Cidade Velha,
a roupa no varal ilumina-se à última luz do dia:
o lençol branco de uma mulher inimiga,
a toalha de um homem inimigo
para enxugar o suor do seu rosto.
No céu da Cidade Velha
há uma pipa.
No fim da linha —
um menino,
que eu não vejo
por causa da muralha.
Hasteamos muitas bandeiras,
eles hastearam muitas bandeiras.
Para pensarmos que eles são felizes.
Para pensarem que nós somos felizes.
No original hebraico as palavras “uma mulher inimiga” e “um homem inimigo”, respectivamente do segundo e terceiro versos, seriam literalmente “uma mulher inimiga minha” e “um homem inimigo meu”. Como no hebraico a posse é indicada por terminações de uma letra acrescida ao final do objeto, não é necessária uma palavra a mais. A opção de Amâncio de eliminar o “minha” e o “meu” é acertada, porque iriam sobrecarregar os versos sem acrescentar significado. Ao mesmo tempo, na tradução foi conservada a sintaxe e repetição que remetem a versículos bíblicos e dão lastro histórico à tragédia de vizinhos inimigos cujas vidas são feitas das mesmas pequenas coisas.
Alimento poético
A poesia de Amichai alimentou-se de três afluentes caudalosos: a familiaridade com os textos religiosos desde a infância, a escolha do hebraico para sua obra e suas experiências pessoais. O primeiro desses fatores deu a Amichai o cerne de sua identidade. Cresceu em uma família grande, unida, onde as festas eram celebradas com alegria e tradição. Isso contribuiu ao senso de continuidade dos poemas do autor:
Penso que religião é boa para crianças, especialmente crianças instruídas, porque dá espaço para imaginação, todo um mundo imaginativo separado do mundo prático. [...] É um mundo de fantasias decifradas, muito semelhantes às histórias infantis ou contos de fadas. [...] Meu senso histórico veio dessas histórias.
A segunda fonte de sua poética, a escolha do hebraico para sua poesia, foi produto da coincidência entre o momento de queda livre para dentro do modernismo e o começo da formação do Estado judaico. Amichai foi um dos primeiros poetas a participar dessa mudança radical, beneficiando-se do presente e passado contidos no idioma. O hebraico era a língua nacional dos judeus desde a Idade Média, presente na liturgia e na literatura laica, mas somente no final do século 19 é que se transformou na língua falada do dia a dia.
Eliezer Ben-Yehuda (1858-1922), lexicógrafo de origem bielorrussa radicado em Israel, enxergou que a língua é a espinha dorsal de um povo e tomou para si a modernização do hebraico, renascido após atravessar milênios sem ter jamais morrido. Houve uma efervescência na experimentação com a língua na escrita da ficção, poesia e ensaio, adaptando-a para o mundo contemporâneo. Foi necessário inventar termos coloquiais e vernáculos, que resultaram em uma criatividade vertiginosa. O Prêmio Israel da Literatura Hebraica outorgado a Yehuda Amichai, em 1982, foi atribuído à mudança revolucionária que ele causou na linguagem poética ao combiná-la à substância do dia a dia.
O terceiro afluente que deságua em sua poesia, sua experiência pessoal, é o alimento de todo poeta. Para Amichai, tudo que lhe aconteceu, e também o que aconteceu a seus pais, avós, bisavós, faz parte de sua poesia. Cada verso seu é uma gangorra de memória e esperança. O poema a migração dos meus pais demonstra isso com lirismo em camadas arqueológicas:
E a migração dos meus pais não arrefeceu em mim.
Meu sangue ainda continua a ressoar entre as minhas paredes
mesmo depois que o navio já estava em seu lugar.
A migração dos meus pais não arrefeceu em mim.
Ventos de muito tempo sobre pedras.
A terra esquece os passos que nela pisaram.
Terrível destino. Pedaços de conversa após a meia-noite.
Conquista e retirada. A noite lembra e o dia esquece.
Amichai não esquece os passos que pisou e nem os ventos de muito tempo sobre pedras, a dor ancestral é igualmente concreta, lancinante, digna de compaixão. Em eu não fui um dos seis milhões, faz uma associação entre as colunas de fogo e fumaça que guiaram os hebreus pelo deserto e as colunas de fogo e fumaça que os pilotos dos Aliados viam sobre os campos de extermínio. O eu lírico, que não esteve na Shoá e nem no Êxodo do Egito, (re)vive o desespero dos que se viram encurralados nas câmaras de gás:
Eu não fui um dos seis milhões
que morreram na Shoá e não estive nem mesmo entre os
resgatados
nem fui um dos seiscentos mil que saíram do Egito
mas cheguei do mar à Terra Prometida,
eu não estive entre todos aqueles, mas o fogo e a fumaça
ficaram em mim, e as colunas de fogo e fumaça mostram
o caminho noite e dia, restou em mim a busca insana
por uma saída de emergência e por lugares macios,
pela nudez da terra para me abrigar dentro da fragilidade
para dentro da esperança, restou em mim o desejo da busca
de água fresca falando em voz baixa para a rocha e batendo loucamente.
A formação religiosa de Yehuda Amichai também alimentou seu conflito entre fé e descrença, sua busca por significado da vida e da morte, com a qual deparou-se inúmeras vezes. A realidade israelense é uma costura frágil entre o horror à guerra e a necessidade dela para a sobrevivência. Ele não tinha respostas, sabia fazer perguntas que desafiavam o leitor, israelense ou não, a responder com compaixão. Em seus poemas, na boa tradição judaica, por vezes o eu lírico fala diretamente com Deus ou a seu respeito, ironia e homenagem em partes iguais, como se vê em olhos:
Os olhos do meu filho mais velho são como figos negros
que nasceram no fim do verão.
Os olhos do meu filho menor são claros como
gomos de laranjas, pois ele nasceu na estação delas.
Os olhos da minha filha pequena são redondos
como as primeiras uvas.
Todos são doces na minha preocupação.
Os olhos de meu Deus vagam por toda a terra
e meus olhos procuram sempre ao lado de casa.
Deus se ocupa dos olhos e das frutas,
eu com o negócio da preocupação.
É difícil imaginar que este entretecido de sagrado e profano, extraordinário e corriqueiro, narrativa da guerra para exaltar a paz — tudo isto em uma voz próxima ao solo, mais sussurrada do que projetada — seria o legado de um poeta que descobriu a poesia em uma biblioteca ambulante de cabeça para baixo. Mas a metáfora é perfeita: somente alguém com a semente da poesia dentro de si teria o impulso irresistível de reordenar palavras esparramadas e produzir essa obra que conversa com todos, de Deus Todo Poderoso até o Zé do Armazém.
© 2019 Rascunho. Publicado com permissão.
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