Machado de Assis nasceu há 180 anos. Glosando um romancista da época, eram tempos de reis (de imperadores, na verdade). Apesar do 7 de Setembro, a monarquia permanecia inabalável no Brasil. Quando D. Pedro II subiu ao poder com apenas 15 anos, Machado ainda era Joaquim Maria, um garotinho com pouco mais de um ano, sem ideia alguma de que se tornaria um dos nossos principais literatos. Em 1908, já em tempos republicanos, o escritor — bastante estimado pelos seus pares, funcionário público exemplar, presidente da Academia Brasileira de Letras, que ajudara a fundar — mal deixava a vida e já começava a galgar os degraus rumo à glória eterna.
Como é bem de nosso gosto por datas redondas, certamente as comemorações dos quase dois séculos de nascimento de nosso maior escritor, “enigmático e bifronte” como bem observou Antonio Candido, vão enriquecer os estudos sobre a obra e o homem Machado de Assis. Não faltam, aliás, contínuas pesquisas sobre sua obra. Tampouco faltam investigações que se detenham sobre o Machado pessoa pública. Tudo isso é bastante positivo, visto que frequentemente tais estudos vêm iluminar um aspecto ou outro do autor de Memorial de Aires.
Em Escritor por escritor: Machado de Assis segundo seus pares (1908-1939), os organizadores do volume Hélio de Seixas Guimarães e Ieda Lebensztayn proporcionam ao leitor o contato com textos de pessoas próximas, a maioria homens de letras, que vão tratar sobre o escritor desde seu falecimento, em 29 de setembro de 1908, e nos anos subsequentes da década de 1910, rareando no decênio seguinte, época do Modernismo e sua aversão aos medalhões literários, até chegar a vários autores que, no centenário de Machado, em 1939, vão dar definitivamente o demão da imortalidade ao escritor.
O volume dos dois estudiosos de Machado começa apresentando depoimentos, relatos etc. de Rui Barbosa, Artur Azevedo, Araripe Júnior, Júlia Lopes de Almeida e de outros, feitos sob o impacto da morte do escritor, nos quais é possível inferir o engrandecimento póstumo que o “Bruxo do Cosme Velho” iria obter e algumas formas de interpretação da obra machadiana que se repetiriam, com algumas variáveis, por muitos dos que se debruçaram posteriormente sobre sua produção literária. Uma delas relaciona-se ao humor de Machado. Por exemplo, o dramaturgo Arthur Azevedo — companheiro do escritor no serviço público — destaca essa característica machadiana: “encontra-se o riso no fundo de todos os seus livros, embora ele o quisesse disfarçar, porque estava convencido de que o riso não lhe ficava bem. Se Machado de Assis não fosse um tímido, ninguém com mais impetuosidade nem com mais brilhantismo teria atacado de frente os ridículos da sociedade”. Como se depreende das observações do irmão de Aluísio Azevedo, o humor machadiano caracterizava-se pela fina ironia com que analisou a sociedade de seu tempo.
Num e noutro texto selecionado para este volume, vale destacar, por exemplo, a interpretação corrente sobre Capitu, uma das mais famosas e discutidas personagens do romance machadiano, como uma mulher desleal. Oliveira Lima, na conferência proferida na Sorbonne, em 3 de abril de 1909, observa, à certa altura, que “essa linda Capitu, a rapariguinha de espírito precoce que, num adorável idílio infantil, tão simples e entretanto tão atraente, guia, aconselha e domina já, por meio de sua decisão perspicaz, o menino de vontade mais fraca que mais tarde ela enganará”. Não é difícil detectar, na passagem acima, a interpretação corrente de que Capitu era uma figura feminina pérfida e infiel.
O próprio Mário de Andrade, no seu estudo Machado de Assis, de 1939, sem mencionar expressamente a esposa de Bento Santiago, mas como que dela tecendo comentários, ambiguamente salienta que, na obra machadiana, “as mulheres são piores que os homens, mais perversas”. Um pouco adiante, Mário acrescenta “há em quase todas elas uma inteligência mais ativa, mais calculista; há uma dobrez, uma perversidade e uma perversão em disponibilidade, prontas sempre a entrar em ação”. Eram ainda interpretações correntes acerca principalmente de Capitu.
Este tipo de leitura só cairia por terra com Helen Caldwell, professora americana que, em 1960, publicou O Otelo brasileiro de Machado de Assis, trazendo à discussão suspeitas sobre Bento Santiago, narrador em primeira pessoa, que arquiteta ao longo da narrativa adulterações que visam a comprovar um suposto adultério vivido pela esposa e Escobar, seu amigo do peito. A releitura de Caldwell acabou influenciando Antonio Candido, Roberto Schwarz, John Gledson, Silviano Santiago e tantos outros, jogando uma pá de cal na velha questão “Capitu traiu ou não?” e pondo em circulação novas discussões sobre Dom Casmurro (1899).
O outro lado
É claro que o escritor não agradava a todos. Sílvio Romero, por exemplo, não considerava Machado o grande autor de prestígio como a maioria julgava que ele era. Noutros textos repostos em circulação pelos dois organizadores, já passados alguns anos da morte de Machado, mais vozes dissonantes começaram a surgir. Ao destacar obras que só faziam crescer a importância de Machado de Assis, em artigo de 1920 intitulado Alfredo Pujol: Machado de Assis: conferências, Medeiros e Albuquerque traz uma nota destoante: “Sílvio Romero deixara-se tomar de uma grande paixão por Tobias Barreto, seu conterrâneo e amigo. Considera-o uma figura genial. Irritava-se com o esquecimento em que o via cair, enquanto Machado de Assis continuava a crescer na estima pública. Daí a ideia de escrever um livro contra este”. Ainda no mesmo artigo, o autor da letra do Hino à República classifica a produção literária de Machado de “obra de tímido; não há nela nenhuma vibração forte, nenhuma grande criação” e julga que Alfredo Pujol exagera ao considerar Machado um “artista formidável”.
Na opinião de Medeiros e Albuquerque, Machado não havia sequer conseguido criar uma personagem marcante. Possivelmente, para ficar circunscrito ao romance, ainda não dera pela supostamente Capitu de olhos de “cigana oblíqua e dissimulada”, com o fútil e amoral Brás Cubas, com Palha e Sofia, alpinistas sociais que levam o ingênuo Rubião à bancarrota. Apesar de alguns senões relacionados ao engrandecimento de Machado, Medeiros e Albuquerque salienta enfim que o autor de O alienista havia sido “um grande escritor”.
No trecho da introdução a seu ensaio Machado de Assis e Joaquim Nabuco: comentários e notas à correspondência entre esses dois escritores, Graça Aranha — o escritor que rompeu com a Academia Brasileira de Letras e alinhou-se aos moços que fizeram o Modernismo — comenta que Machado ignorou o escravo negro. Infelizmente, este dado serviu por muito tempo a alguns críticos como uma espécie de falha imperdoável do autor de Casa velha (1885).A observação — equivocada — alimentou a ideia de omissão do Machado afrodescendente em relação aos seus. A força de tal tese pôde ser facilmente corroborada pela pouca importância das figuras negras em sua obra e também pelo seu aparente distanciamento das questões abolicionistas.
No entanto, estudiosos posteriores sobre o escritor mostraram que tal ideia carece de sustentação. R. Magalhães Júnior, por exemplo, em Machado de Assis desconhecido, livro da década de 1950, detalha contos e crônicas nas quais Machado mostra sua preocupação com o escravo negro. Outro estudioso, Sidney Chalhoub, em Machado de Assis historiador (2003), enfatiza o Machado funcionário público favorável ao escravo, já que, entre 1870 a 1880, era responsável pela Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura cujos “principais assuntos da seção eram política de terra e escravidão”, mais precisamente o acompanhamento da aplicação da Lei do Ventre Livre. Outro pesquisador que de Machado retira a mancha de homem e escritor omissos é Eduardo de Assis Duarte. Em Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo, publicado em 2007, o pesquisador evidencia e exemplifica com trechos da crítica teatral, da poesia, da crônica e dos romances machadianos preocupações relativas ao problema da escravidão.
Entre as cartas que há em Escritor por escritor: Machado de Assis segundo seus pares (1908-1939), uma chama bastante atenção. Numa correspondência datada de novembro de 1908, Joaquim Nabuco chama a atenção de José Veríssimo. É que este havia escrito numa homenagem a Machado que o romancista era mulato. Nabuco deplora tal menção e salienta que nem o próprio escritor se via como tal. Emília Viotti da Costa, mais tarde, em Da Monarquia à República, vai usar a mesma carta para postular que Machado, negando-se afrodescendente e buscando a inserção social que a elite branca de então permitia a alguns indivíduos afrodescendentes, fazia o jogo do sistema de clientela e patronagem da época, resultante, segundo a autora, do monopólio dos meios de produção pela minoria branca e as limitadas oportunidades de participação econômica, política e social dos homens livres de então.
A leitura dos diversos textos deste livro produzidos entre 1908 a 1939 (outros volumes serão organizados pelos dois pesquisadores) indicam múltiplos Machados concentrados na singular figura de nossas letras que é Machado de Assis: o escritor, o funcionário público, o amigo discreto, o sujeito bem-humorado, o marido exemplar, o gago, o epilético, o tímido, talvez até o homem embranquecido socialmente. “A suma das sumas” é que as variadas óticas de contemporâneos e pósteros expressam que Machado foi plural como plural continua sendo sua obra.
Os organizadores
Hélio de Seixas Guimarães
Professor livre-docente na área de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do CNPq desde 2008, pesquisador associado da Biblioteca Brasileira Guita e José Mindlin e editor da revista eletrônica Machado de Assis em linha. Foi Tinker Visiting Professor na Universidade de Wisconsin, em Madison (EUA), e professor visitante na Universidade da Califórnia (UCLA), em Los Angeles. Tem pós-doutorados pelas University of Manchester (2007) e Fundação Casa de Rui Barbosa (2015-2016). É autor de Machado de Assis, o escritor que nos lê (2017) e A olhos vistos, uma iconografia de Machado de Assis (com Vladimir Sacchetta, 2008). Em 2005, recebeu o Jabuti pela obra Os leitores de Machado de Assis.
Ieda Lebensztayn
Doutora em Literatura Brasileira pela USP, crítica literária, pesquisadora, ensaísta, preparadora e revisora de livros. Fez pós-doutorados a respeito da correspondência de Graciliano Ramos (Instituto de Estudos Brasileiros-IEB-USP, 2010) e acerca da recepção literária de Machado de Assis (Biblioteca Brasiliana Mindlin, 2015). É autora de Graciliano Ramos e a novidade: o astrônomo e os meninos impossíveis (2010) e organizadora de Cangaços e conversas (com Thiago Mio Salla, 2014). É colaboradora do caderno Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo.
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