Na calçada, no meio da multidão, Jerômino percebeu o que até então tinha passado ao largo de seus quarenta e três anos de uma atribulada existência. O pensamento veio assim de sopetão, como se ele tivesse tropeçado no tecido gravitacional invisível do Universo e caído de cabeça num outro plano espaço-tempo onde ele já não era o que fora há um segundo.
Jerônimo deu mais um, dois, três passos e parou na esquina, esperando o sinal abrir e o coração se acalmar. O pensamento ainda percorria seu corpo, contaminando todo o sistema nervoso periférico com a venenosa conclusão inescapável. Quando o sinal abriu, ele nem se deu conta, mas seguiu a multidão como que por instinto.
Até que ali, no meio da travessia, se deparou com a completa impossibilidade de seguir adiante. Licença, licença, pediam as pessoas, se desviando do obstáculo humano. Um gordo apressado que falava ao telefone esbarrou nele, mas Jerônimo não se moveu nem se deixou comover pela mistura de xingamento e halitose. No horizonte, o sinal de pedestres piscava, anunciando o inevitável: era hora de os homens e suas alminhas darem continuidade ao caos semiordenado da vida, ao qual Jerônimo representava, naquele momento, um obstáculo.
Ele tentou, juro que tentou!, dar um passo à frente. Sem sucesso. O sinal abriu e alguém do outro lado perguntou “Quem morrer, mané?!”. Mas ele, de dentro de seu escafandro filosófico, não retrucou. Deu-se início, então, à sinfonia cacofônica de buzinas e xingamentos. E Jerônimo percebeu, pelo canto do olho, que todos o observavam com a angústia de quem se vê diante de uma tragédia iminente. “Cai fora, otário!”, gritou o motorista do carro, pisando ameaçadoramente no acelerador. Até mesmo uma senhorinha de aparência mansa gritou “Sai daí, idiota!”.
Mas Jerônimo se manteve ali. Até porque não tinha opção.
Cansado de buzinar, e diante de uma plateia cada vez mais numerosa, o motorista saiu do carro, se pôs em frente do homem-poste, fechou os punhos e se armou de coragem para esmurrar a cara de Jerônimo. Que, vendo o soco se aproximar, só conseguia pensar o óbvio insuportável que o acometera alguns passos atrás, antes que ele se transformasse naquela forma bizarra de monumento: eu atrapalho.
O golpe o atingiu no olho, mas Jerônimo não se moveu nem gritou. Até porque ele não sentia dor física. Eu atrapalho, eu atrapalho, eu atrapalho, pensava ele cada vez mais alto, com uma esperança irreal de se fazer ouvido. E desculpe se eu atrapalho, eu não queria atrapalhar, longe de mim, me tira daqui, pelo amor de Deus, suplicava ele, sem que ninguém soubesse.
O motorista se afastou na mesma velocidade em que os observadores se aproximaram, reunindo-se em círculo em torno da cena inusitada: um homem que só sabia atrapalhar condenado a fazer justamente o que, sem querer, fez de melhor ao longo de toda a vida.
A Jerônimo ocorreu, então, a saída fácil da imaginação estéril: e se de repente, porque essas coisas têm de ser sempre repentinas, seu coração cansado parasse de bater e um a um seus órgãos cedessem ao oblívio que nos irmana?
Triste. Até tétrico. Mas ainda assim uma solução. Uma vez que seu coração parasse, ele deixaria de atrapalhar o trânsito e o caos criado por sua existência daria lugar àquela agradável, ainda que falsa, sensação de ordem novamente. O homem furioso que ainda há pouco o esbofeteara poderia continuar indo de um lugar ao outro. Os carros avançariam ao ritmo matemático dos sinais verdes e vermelhos. As pessoas se dissipariam e tratariam de seus afazeres, voltariam para suas casas e, à mesa do jantar, diriam para quem estivesse presente: você não sabe o que eu vi hoje! E o sol se poria e nasceria. Nada de novo. Aquela coisa toda que o Eclesiastes ensina.
Porque a única forma de continuar atravessando as ruas sem causar algum tipo de incômodo aqui e ali era deixar de atravessá-las. Jerônimo, entre a melancolia e o alívio de descobrir a solução para seu problema e para o problema dos engenheiros de tráfego, imaginou a perfeição do mundo depois que se coração parasse e ele se transformasse em ausência. Os sorrisos de Betina para outro homem que a faria muito mais feliz. O filho que encontraria sabedoria nos conselhos de outro pai. Os colegas de trabalho. Os parentes. Até o síndico que jamais teria de atender o interfone de Jerônimo pedindo encarecidamente que ele intercedesse pelo santo sossego do sábado à noite.
Àquela altura, helicópteros das emissoras de TV já cruzavam os céus, na expectativa de captar a melhor imagem do homem que, parado na faixa de pedestres, deu um nó na cidade toda, atrapalhando a vida de milhões. Um apresentador o chamou de bocó. Outro, naquele furor indignado que lhe era característico, clamou pela ação enérgica de um atirador de elite. Não é possível que o cidadão fique refém de um maluco desses, concluiu antes de chamar os comerciais.
Mas o coração de Jerônimo insistia em bater: atra-palhar, atra-palhar, atra-palhar. Inco-modar, inco-modar, inco-modar.
Assim resignado àquela vida de obstáculo, ele deixou que, sob os aplausos da multidão, um bombeiro envolvesse seu corpo com uma corda, para que ele fosse içado por um helicóptero e levado a um hospital ou manicômio próximo. Lá do alto, sentindo na cara o vento quente da tarde de verão e vislumbrando no horizonte um princípio de arco-íris, ele se deixou encantar pelo caos que, sem sua presença incômoda, retomava seu curso natural.
E, sem que ninguém fosse capaz de ouvir, murmurou um sincero e sofrido pedido de desculpas.
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