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Em uma manhã ensolarada de São Paulo, góticos e cinéfilos se uniram em frente a um antigo cinema de rua para um evento especial: a exibição das três versões cinematográficas de Nosferatu. Vestidos com roupas pretas e maquiagens pesadas (além de ocasionais boinas e sacolas azuis do serviço de streaming Mubi), os espectadores ficaram mais de seis horas nas imediações, assistindo às versões de 1922, 1979 e a que interessava a todos, lançada no segundo dia deste ano nos cinemas brasileiros.
Seria difícil aturar três versões de uma mesma história em qualquer outro contexto. Mas os filmes diferem tanto entre si que tornaram o evento uma experiência completa para entender o valor do novo produto. Dirigida pelo ousado Robert Eggers, responsável por obras modernas de terror como A Bruxa e O Farol, a releitura difere das visões eternizadas pelos cineastas F.W. Murnau ou Werner Herzog, representantes alemães do expressionismo e do cinema novo, respectivamente.
Para começar, o Nosferatu vivido por Bill Skarsgård tem bigode cheio e sotaque romeno, o que soa esquisito para quem pensa no monstro careca e pálido interpretado anteriormente por Max Schreck e Klaus Kinski. Mas essa caracterização menos “classuda” se aproxima bem mais da descrição física de Drácula presente na obra homônima do irlandês Bram Stoker – vale relembrar que o roteiro do filme de 1922 é uma adaptação não autorizada do livro publicado em 1897, por isso o nome diferente para todos os personagens.
Fora as alterações no próprio monstro, o roteiro também se aprofunda em duas questões que sempre estiveram implícitas nos filmes antigos, mas que só se tornaram escancaradas no novo: a atração de Ellen Hutter pelo Conde Orlok e a presença da religiosidade. Se Herzog mostrou que o temeroso vampiro era solitário e buscava amor, Eggers decidiu ir na contramão e revelar que a donzela também se sentia só antes de encontrar a felicidade se casando com Thomas.
Possessão demoníaca
Essa escolha pode incomodar aqueles que preferem os longas anteriores, mas é justamente ela que abre caminho para que o Nosferatu inédito seja ainda mais aterrorizante. O roteiro de Eggers faz com que a ligação entre o monstro e a donzela seja baseada em uma espécie de possessão demoníaca, tornando o vampiro muito mais poderoso e onipresente antes mesmo de se mudar para a cidadezinha de Wisborg.
A partir dessa conexão imaterial, a película se aprofunda na temática religiosa. Além dos costumeiros crucifixos, que já tinham importância nos trabalhos de 1922 e 1979, o cristianismo é apresentado com a ajuda de personagens e até citações à Bíblia. Na passagem em que Thomas Hutter fica ferido após um encontro com o vampiro, são cristãos ortodoxos que o acolhem e tentam protegê-lo do mal. Mais adiante, o personagem Albin Eberhart Von Franz, vivido pelo veterano Willem Dafoe, faz uma citação à luta entre Jacó e Deus no Peniel. A mensagem sobre a importância da fé pode passar batido entre os sustos do longa-metragem, mas uma coisa é bastante clara: Nosferatu é um filme sobre o poder do sacrifício como meio de salvação.
Para livrar o mundo do mal do vampiro, Ellen Hutter sempre precisou se entregar ao Conde Orlok. Só assim ele poderia ser morto com o nascer do sol, ou seja, com o surgimento da luz. Ao destacar isso, Eggers chegou a um roteiro mais completo do que seus antecessores, trazendo uma justificativa para tudo que ocorre – desde a ida de Jonathan para assinar a papelada com o monstro até o momento em que Ellen entende que deve se colocar como oferenda para livrar o mundo de todo o mal.
Graças a esse cuidado, além de cenas com muito estilo e boas atuações, o novo Nosferatu talvez seja o melhor dos três. Mas seu brilhantismo só se dá graças ao que foi sendo trabalhado por cada um de seus antecessores. Enquanto Murnau foi capaz de adaptar muito bem o livro de Bram Stoker, apesar das limitações legais, Herzog foi quem tornou a história um pouco mais realista e deu a ideia para que os personagens deixassem de ser unidimensionais. Dessa forma, Robert Eggers apenas bateu o último prego no caixão para empacotar um excelente filme sobre vampiro, possessão e sacrifício.
- Nosferatu
- 2025
- 132 minutos
- Indicado para maiores de 16 anos
- Em cartaz nos cinemas