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Ao assistir ao teaser de Aos Amigos, A Lei, novo documentário da Brasil Paralelo já disponível em sua plataforma de streaming, alguém poderia pensar que viria aí um produto demonizando a Lei Rouanet e tratando os artistas como vagabundos “mamateiros”. Ledo engano. Aqui e acolá, o filme até confirma o viés de uma parcela do público que despreza a cultura nacional. Mas o que se sobressai é uma ode aos fazedores de cultura do país e uma excelente explicação de como a Lei Rouanet funciona, com sua base nobre (e liberal) – o que estraga é um ou outro brasileiro que a corrompe.
Na parte que menos interessa, alguns dos 25 entrevistados no longa-metragem dirigido por Silvio Medeiros falam da Lei Rouanet como aquele caboclo que quer ganhar na loteria mas nunca fez uma aposta. São criadores que por uma razão qualquer nunca se esforçaram para tentar usar as leis de incentivo à cultura. É duro ouvir platitudes sobre quem mora longe do eixo ou é apenas pequeno nunca ser ajudado e que o Estado é o vilão-mor, quando muitas vezes é o empresariado que se equivoca ao usar a Rouanet para trazer visibilidade aos seus negócios vinculando-se a espetáculos de estrelas consagradas. Em favor dos governantes, vale ressaltar que a Constituição vigente obriga todos eles a fomentarem a área com investimentos. E aí já podemos abordar o que Aos Amigos, A Lei tem de melhor.
Ao mesmo tempo em que relata que o atual governo Lula vai liberar uma verba recorde para o setor, com exigência mais frouxa na hora da prestação de contas de cada projeto, o documentário aponta que a Secretaria de Cultura de Bolsonaro represou uma soma bilionária que deveria ter sido disponibilizada em sua gestão. O ressuscitado MinC da cantora Margareth Menezes agradece a herança vultosa deixada de bandeja pelo ex-secretário e hoje deputado federal Mário Frias.
Há também uma justa cobrança pela exoneração da servidora Flavia Faria Lima na era Frias. Destaque na CPI que investigou alguns desvios da Rouanet, que não foram cometidos por artistas progressistas, mas por produtores pilantras que bancavam até casamentos por intermédio da lei, Flavia acabou sendo convidada para integrar o governo Bolsonaro e desenvolver uma ferramenta menos burocrática do que o Salic – sistema eletrônico que complica a vida do artista na hora de inscrever um projeto. Parecia o futuro chegando. Ou ao menos a ferramenta que faltava para aprimorar o mecanismo, integrando projetos e prestações de contas num só lugar, de maneira didática e prática. Mas Flavia foi demitida da Secretaria antes de ver sua ideia triunfar.
Desde a estreia do filme da BP, as redes sociais dessa abnegada agente cultural vêm sendo inundadas de mensagens de carinho de pessoas que descobriram só agora sua luta em prol da cultura nacional. Diagnosticada com um câncer sem perspectiva de cura, Flavia não deixou de viajar para Brasília em busca de audiências com congressistas e até com a atual Ministra da Cultura para defender o programa que extinguiria o Salic de vez e deixaria a Rouanet mais eficaz. Ela tem informado aos que se emocionaram com o documentário que está bem de saúde e seguirá no front até o último dia de vida.
O togado fã de Roberto
Aos Amigos, A Lei também reúne anedotas que pouco ou nada têm a ver com o mecanismo de incentivo em si, mas exemplificam que é um certo tipo de brasileiro que bagunça com tudo. Há desde causos exagerados contados pelo dramaturgo Gerald Thomas, até o relato de Paulo Cesar de Araújo, que escreveu um livro sobre Roberto Carlos e viveu uma situação insólita. Na audiência de conciliação entre o artista e o autor, este viu o juiz do caso decretar com veemência o recolhimento dos exemplares da obra. Ato contínuo, após a censura instaurada, o magistrado aproximou-se do cantor e lhe entregou um CD com suas próprias gravações para a apreciação do ídolo. É mole ou quer mais? Araújo também escreveu um livro sobre o caso, O Réu e o Rei, que ainda não foi censurado.
No ato final, a Brasil Paralelo afasta de vez aquela ideia de que o artista e os fazedores de cultura são cidadãos que só querem sombra, água fresca e dinheiro estatal. A classe é tratada como heroica, responsável por criar um alimento que nutre a alma dos que estão abertos a isso. O doc dá voz a dançarinas, escultores, grafiteiros, músicos, artesãos e profissionais que atuam nos bastidores e se mantém na ativa com ou sem incentivo governamental ou via mecenato (que é o caso da Lei Rouanet). A indústria criativa do Brasil movimenta mais dinheiro do que automobilística – geralmente, sem poluir. Portanto, um trabalho que em sua essência ajuda a desmistificar a arte e seus caminhos tortuosos por aqui não pode ser vaiado pelo teaser, e sim aplaudido por sua integridade.