Ao estrear no catálogo da Netflix no dia 3 deste mês, Retratos Fantasmas finalmente pôde ser apreciado pelo público do país. O documentário de Kleber Mendonça Filho, até então, só havia sido exibido em festivais e em salas de cinema com abertura para filmes de arte. Por isso, a chegada ao streaming ajudou a descortinar a obra para muitos espectadores, curiosos especialmente pelo fato desse ter sido o indicado do Brasil a concorrer a uma das vagas de Filme Estrangeiro na próxima cerimônia do Oscar.
E agora dá para cravar: vamos ficar de fora mais uma vez. A não ser que dê a louca na Academia ou que a produção internacional tenha experimentado um 2023 atípico e horroroso, Retratos Fantasmas não tem a menor chance de fazer o país ganhar uma estatueta pela primeira vez em tal categoria. Trata-se de um filme-ensaio, em que o diretor pernambucano passa parte do tempo lamentando as mudanças no bairro em que cresceu no Recife, outra parte chorando as pitangas porque a maioria dos cinemas de rua de sua cidade fecharam as portas, e o trecho final reclamando da ascensão das igrejas evangélicas, que compraram alguns desses imóveis.
O volume de criticas negativas a Retratos Fantasmas cresceu exponencialmente em fóruns usados por cinéfilos após sua aterrisagem na Netflix. Parte dos comentaristas ficou incrédula com a baixa qualidade do material, parte ficou indignada com sua escolha para representar o país na maior festa do cinema. A comissão que optou pelo trabalho de Mendonça estaria vingando a de três anos atrás, que não selecionou seu filme anterior (Bacurau) para a mesma finalidade por haver um conflito ideológico entre o governo então vigente (de Jair Bolsonaro) e as posições políticas do cineasta. Bastante vocal sobre suas preferências partidárias, Mendonça aparece “fazendo o L” em Retratos Fantasmas e chegou a declarar nas redes sociais, em 2021, que havia chegado sua hora de se filiar ao Partido dos Trabalhadores, o PT.
ASMR de uma hora e meia
Nada disso deveria pesar ou influenciar na apreciação de seu novo longa-metragem. Com a mesma visão política, o recifense apresentou um filme alvissareiro em 2013, O Som ao Redor, que o colocou em contato com uma audiência maior, após anos dirigindo apenas curtas e publicando análises de filmes (ele também é crítico de cinema). Três anos depois, voltou com seu grande trabalho, Aquarius, em que Sônia Braga vive uma jornalista cultural que não quer perder seu apartamento para a especulação imobiliária. Depois veio Bacurau, que dividiu opiniões, mas foi laureado pelo júri do Festival de Cannes, em 2019, algo que não acontecia com uma produção brasileira desde O Pagador de Promessas (1962).
O novo trabalho conversa com sua filmografia pregressa, revisitando cenários de O Som ao Redor e confirmando que sua grande preocupação como artista é com casas que dão lugar a edifícios (como em Aquarius) e com um passado que não resiste à força da modernidade (Bacurau fantasia sobre isso). Justamente por essa característica é que Retratos Fantasmas só interessa ou faz sentido para quem conhece bem sua obra e deseja saber mais sobre esses poucos dilemas que habitam sua mente e coração. Para deixar tudo mais entediante, a narração do documentário é do próprio diretor, que, por não transmitir emoção em suas falas, acaba transformando Retratos Fantasmas num ASMR de uma hora e meia. (Vídeos de ASMR são aqueles que algumas pessoas usam para pegar no sono.)
O Brasil poderia ter tentado a vaguinha no Oscar com o filme do Mussum, do Claudinho & Buchecha ou com qualquer outro produto que não fosse esse doc soporífero e narcisista, que denuncia que cinemas de rua estão virando igrejas (oh, que grande descoberta!), entre outras observações basilares sobre a desorganização das metrópoles. A Argentina também optou por um registro mais artístico para tentar ficar entre os cinco indicados a Filme Estrangeiro. Mas Os Delinquentes (que em breve estará no catálogo do Mubi) é uma obra-prima quando comparado ao filme de Mendonça. No cinema internacional, após aquele momento singular em que o mundo inteiro prestou atenção em Cidade de Deus (2002), tivemos de aprender a conviver com a condição de fantasma.
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