Em 1958, C. S. Lewis proferiu algumas palestras sobre o amor transmitidas pela rádio BBC. Foram lançadas em livro em 1960, com o nome de Os Quatro Amores. A premissa dessa que é uma de suas obras mais vendidas é a de que Deus é amor, conforme o evangelho de São João, e os amores humanos somente merecem ser chamados assim se e enquanto guardarem semelhança com Ele, o que significa dizer: subordinados a Ele.
Não foi a primeira vez que Lewis tratou do tema. Seu primeiro livro, publicado em 1936, chama-se A Alegoria do Amor, um estudo sobre literatura medieval. Em Os Quatro Amores, fez referência a essa obra, dizendo: “Há alguns anos, quando escrevi sobre a poesia amorosa medieval e descrevi sua estranha e algo fictícia ‘religião do amor’, fui suficientemente cego para tratar o assunto como um fenômeno puramente literário. Aprendi melhor desde então.”
É um trecho constante da parte em que fala sobre Eros, o “amor romântico”. Antes dele, o autor irlandês analisou Storge (Afeição) e Philia (Amizade), sobre os quais demonstra ter muito a ensinar. Mas quanto a Eros e Ágape (Caridade), o autor parece mais estar aprendendo ao escrever do que ensinando. Muito por estar vivendo naquele momento, e pela primeira vez, um relacionamento amoroso na prática.
De fato, Lewis foi solteiro durante quase toda a sua vida, tendo se casado apenas em 1956, aos 58 anos de idade, mas sem que houvesse um casamento propriamente dito, muito menos um namoro antes. É uma das passagens mais interessantes de sua biografia, tendo casado com sua então amiga, Helen Joy Davidman, que tinha 41 anos de idade, para que esta pudesse continuar a viver na Inglaterra, cujo governo havia lhe negado o visto de residência. O casamento resolveria isso, como resolveu. Mas ambos não namoravam antes, não foram morar juntos depois, muito menos viveram maritalmente.
Na prática, portanto, Lewis seguia solteiro. Entretanto, foi se apaixonando por Helen que, menos de um ano depois, em março de 1957, foi diagnosticada com um câncer de mama e nos ossos, já em fase terminal. Só então Lewis se rendeu de fato ao Eros e se casou religiosamente com Helen. Deus lhes concedeu então um belo milagre, de mais ou menos dois anos de vida em comum. Helen apresentou uma melhora significativa e voltou para casa. A doença retornou em 1960, levando-a em definitivo. Foi neste intervalo de vivência de Eros, entre 1958 e 1960, que C. S. Lewis proferiu suas palestras e publicou seu livro sobre os quatro tipos de amor.
Com caridade, em caridade, por caridade
A experiência mudava Lewis, fazendo-o compreender melhor não apenas o Eros, mas também Ágape, em razão da condição de saúde de Helen. Ao começar a falar sobre Ágape, disse: “William Morris escreveu um poema chamado O Amor É Suficiente, e dizem que alguém fez uma breve revisão do mesmo, anotando na margem: “Não é não”. Foi este o fardo deste livro. Os amores naturais não são autossuficientes. (...) Dizer isso não significa menosprezar os amores naturais, mas indicar onde está sua real glória.” Que só pode existir com Ágape, em Ágape, por Ágape.
Mas uma coisa é saber isso na teoria, outra viver isso na prática. É impossível amar sem sofrer, o que leva à constatação inescapável bem expressada por Lewis: “Amar é ser vulnerável. Ame qualquer coisa e seu coração irá certamente ser espremido e possivelmente partido. Se quiser ter a certeza de mantê-lo intacto, não deve dá-lo a ninguém – nem mesmo a um animal. (...) O único lugar fora do céu onde você pode manter-se perfeitamente seguro contra todos os perigos e perturbações do amor é o inferno.”
E Lewis, como confessou no livro, sempre foi bem-sucedido em se defender dos riscos do amor: “Sou uma criatura que põe a segurança em primeiro lugar”. Até se permitir amar Helen. E, com esse amor, sofreu como nunca antes, deixando um registro precioso de sua dor em A Anatomia de um Luto, publicado em 1961, sob pseudônimo, só aparecendo com seu nome depois de sua morte, em 1963. Esse livro, aliás, serviu de base para muito do contido no filme feito sobre a relação do casal, Terra das Sombras, de 1993, tendo Anthony Hopkins interpretado Lewis.
Se Os Quatro Amores dialoga com sua primeira obra, esse sobre o luto contrasta com seu terceiro livro, O Problema do Sofrimento, em que aborda o sofrimento de forma apologética e filosófica, explorando a compatibilidade do sofrimento com a existência de um Deus bom e onipotente. Mas, em Anatomia de um Luto, toda apologética desaparece, com Lewis falando a partir do seu sofrimento, de seu naufrágio emocional, permitindo que o leitor acompanhe sua luta renhida com Deus, a quem chega a chamar de vivisseccionista, veterinário, torturador, sádico.
Uma fragilidade surpreendente
É espantoso. Um dos maiores apologistas cristãos, de quem se esperaria uma reação bem diversa em um momento desses, revelando uma fragilidade incompatível com quem estaria avançado na fé, mais parecendo com um iniciante sendo testado pela primeira vez: “Você nunca sabe o quanto realmente acredita em algo até que a verdade ou falsidade desse algo se torne uma questão de vida ou morte para você. É fácil dizer que você acredita que uma corda é forte e sem defeito, desde que você a esteja usando apenas para amarrar uma caixa. Mas suponha que você tenha de se pendurar por aquela corda sobre um precipício. Você não descobriria então o quanto de fato confiava nela?” É o que Lewis estava descobrindo com seu luto: o quanto confiava em Deus de verdade.
Isso joga luz no final de Os Quatro Amores, quando Lewis tratou da perda do Eros, pela morte do ser amado, e sua consequência na vivência da Caridade: “‘Nos criaste para ti’, disse Santo Agostinho, ‘e o nosso coração não tem sossego enquanto não repousar em ti’. Apesar de ser tão fácil de acreditar nisso por um breve momento diante do altar ou, talvez, quando se está meio orando, meio meditando numa floresta no início da primavera, isso soaria como zombaria ao lado de um leito de morte.”
Lewis sustenta que acreditar em Deus e no Céu por um desejo de reencontro com os seres amados seria algo errado: “Vemos, assim, pela experiência que não existe benefício nenhum em buscar no Céu conforto terreno. O Céu pode dar conforto celestial; nenhum de outro tipo. E a terra também não pode dar conforto terreno. No longo prazo, não existe nenhum conforto terreno.” Mais adiante, conclui: “Aqui embaixo, tudo é perda e renúncia. O propósito específico do luto (do modo como nos afeta) pode ter sido para nos conscientizar disso. Estamos, portanto, compelidos a tentar crer no que ainda não podemos sentir, ou seja, que Deus é a nossa verdadeira pessoa Amada. (...) ‘É fácil amar a Deus?’, pergunta um velho autor. ‘É fácil,’ responde ele, ‘para aqueles que fazem isso’. (...) Aqui, não em nossos amores naturais, nem mesmo na ética, está o verdadeiro centro de toda vida humana e angelical. Com ele, todas as coisas são possíveis. E, com isso, onde um livro melhor começaria, o meu deve terminar. Não ouso prosseguir. Deus sabe, não eu, se alguma vez experimentei esse amor. Talvez eu tenha somente imaginado o sabor.”
Conhecendo melhor o contexto de vida do autor quando dessas palestras e livros, é compreensível, ainda que espantoso, que tenha terminado Os Quatro Amores assim. Ainda estava no “olho do furacão”. Isso não significa que Lewis apostatou, tornou-se ateu ou algo assim. Não. Até o fim combateu o bom combate, procurando o amor de Deus, tentando entendê-lo. Seu último livro, publicado postumamente, trata da oração, o “lugar” mais propício para este amor ser experimentado. Escrito em formato de cartas, com o título Cartas a Malcolm, Lewis escreveu de um ponto de vista profundamente pessoal. No fim, descobrimos que não encontrou, mas foi, em verdade, encontrado por Ele:
“A descoberta mais estranha da vida de um viúvo é a possibilidade, por vezes, de recordar com imaginação detalhada e desinibida, com ternura e gratidão, uma passagem de amor carnal, mas sem despertar novamente a concupiscência. E quando isso ocorre (não deve ser procurado), o espanto se apodera de nós. É como ver a própria natureza saindo do túmulo. O que foi semeado momentaneamente é ressuscitado em permanência. O que foi semeado como devir, surge como ser. Semeado na subjetividade, cresce na objetividade. (...) Então a nova terra e o novo céu, os mesmos, mas não os mesmos que estes, surgirão em nós como ressuscitamos em Cristo. E, mais uma vez, depois de quem sabe que eras de silêncio e escuridão, os pássaros cantarão e as águas fluirão, e luzes e sombras se moverão pelas colinas, e os rostos de nossos amigos rirão de nós com reconhecimento maravilhado. Suposições, é claro, apenas suposições. Se não forem verdade, algo melhor será. Pois ‘sabemos que seremos semelhantes a Ele, pois o veremos como Ele é’.”
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