Há poucos dias, a Netflix divulgou as primeiras imagens dos cenários criados para sua série Cem Anos de Solidão, adaptação do mais celebrado romance de Gabriel García Márquez, ainda sem data de lançamento anunciada. São belos, porém, a casa dos Buendía, com a iluminação utilizada, pareceu acolhedora demais, distante da solidão reinante na obra, impregnada em cada móvel, em todo cômodo, sendo o real ambiente dos personagens.
Quem leu o livro sabe a importância que tem o cenário na história. Não apenas a casa, mas a mítica cidade de Macondo, parida pelos Buendía, a família protagonista da história, que com suas sete gerações de personagens diversos, vários com o mesmo nome, tonteiam o leitor desatento que sofre para descobrir o fio da meada e só o encontra quando se dá conta de que, na verdade, o personagem principal é a família.
A história dela segue, passo a passo, a de Macondo, que nasce de forma idílica e decai capítulo a capítulo, como as gerações dos Buendía, que terminam com um Apocalipse, tanto no sentido de fim da linhagem, como no de revelação do sentido de sua história. O título da obra já indica que mais importante do que o tempo de cada personagem é o tempo do conjunto deles, que é o que dá forma à narrativa. Ou seja, quanto mais o leitor se prende ao aqui e agora de cada Buendía, mais perde a noção do tempo e sentido da história que está a ler.
É só quando nos distanciamos minimamente de cada personagem, enxergando-os mais como quem os vê em uma foto de família antiga, que a Solidão (com maiúscula mesmo) é percebida em sua real dimensão, preenchendo as distâncias entre todos, seus silêncios, seus destinos, encarnando-se em várias espécies: a solidão do abandono, a solidão por abandono, a solidão da covardia, a solidão da temeridade, a solidão do orgulho, a solidão dos sonhos frustrados, a solidão como refúgio, a solidão como a realidade que restou, a solidão da falta de amor (a mais importante na obra).
Não sei se o seriado conseguirá retratar essas solidões tal como Gabo magistralmente conseguiu. Talvez por isso o autor colombiano nunca autorizou que Cem Anos de Solidão fosse para as telas. Se agora isso acontece é por vontade dos herdeiros, ainda que com seu consentimento. Em Gabo & Mercedes – Uma Despedida, seu filho Rodrigo Garcia, autor do livro, contou que o pai lhe havia dito que, quando morresse, eles (Rodrigo e o irmão) podiam fazer o que quisessem com sua obra. Daí porque também publicaram o romance Em Agosto nos Vemos, que Gabo não havia lançado em vida por não considerá-lo terminado.
Solidão póstuma
Se vivo estivesse, aposto que Gabo não teria aceitado nada disso e, desconfio, tampouco gostando do que a Netflix vem apresentando, ainda que no teaser do seriado liberado em abril deste ano se passe a impressão de que ao menos a história será mais fidedigna à obra do que os cenários. Ainda assim, só consigo imaginar Gabo como um dos fantasmas a suspirar solitário em sua casa de infância, como conta em sua autobiografia Viver Para Contar. Há solidão póstuma também.
Mas Gabo jamais desistiu de enfrentar seus fantasmas. Cem Anos de Solidão, aliás, não deixa de ser um acerto de contas com sua infância, quando foi deixado pelos pais depois de nascer para morar na casa dos avôs e, aos oito anos, de lá levado pelos mesmos pais, deixando nele uma dupla marca de solidão. Como esta só se vence com comunhão, é o amor sua cura, seu único remédio. Em O Amor nos Tempos do Cólera, seu livro favorito, Gabo responde a si mesmo, resolvendo a vida com um amor capaz de vencer a morte: “Só me dói morrer se não for por amor”, como diz um dos personagens.
Enfim, se o seriado será digno da obra de Gabriel García Márquez, veremos. Se não for, o tempo o dissolverá, pois “a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a este artifício conseguimos suportar o passado”, como ensina o autor em O Amor nos Tempos do Cólera.
É dessa perspectiva distante no tempo que Gabo deixou suas últimas palavras como escritor (Em Agosto nos Vemos não considero na conta) em Memórias de Minhas Putas Tristes, cujo título enganoso afasta os tolos puritanos. Nesse breve romance, retomou seus temas preferidos: solidão e amor. É como um encontro de suas duas maiores obras, Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera, desaguando na eternidade: “Era, enfim, a vida real, com meu coração a salvo, e condenado a morrer de bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois dos meus cem anos.”
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