“O objetivo da vida não é estar do lado da maioria, mas escapar de se encontrar na fileira dos loucos.” Essa citação atribuída ao imperador romano Marco Aurélio ganha destaque em um momento importantíssimo de Megalópolis, novo filme do diretor Francis Ford Coppola que chegou hoje aos cinemas brasileiros. Responsável por clássicos como O Poderoso Chefão e Apocalypse Now!, o americano de 85 anos sempre brincou perto da loucura em Hollywood. Para exemplificar, Coppola já sobreviveu a três pedidos de falência durante suas seis décadas de atuação. Também precisou desembolsar cerca de 120 milhões de dólares para tirar o novo projeto do papel, reforçando sua costumeira coragem de comprometer o ganha-pão em nome da visão artística. Se Megalópolis é sucesso ou não, isso deve importar pouco para ele, afinal seu legado ninguém tasca.
Coppola deu um pulo até São Paulo para promover o novo filme, o que incluiu participar de um evento na última segunda-feira (28) encarando uma plateia repleta de atores, cinéfilos, banqueiros, estudantes e jornalistas. Não fugiu de piadas sobre estar sem dinheiro e até convidou qualquer pessoa que tivesse “odiado Megalópolis” a subir ao palco durante o bate-papo. Desde que participou do festival de Cannes, em maio deste ano, Coppola tem convivido com críticas negativas ou medianas de pessoas que esperavam mais da obra. Na plataforma Rotten Tomatoes, obteve apenas 35% de aprovação do público, em consonância com o desempenho nas bilheterias. Até 14 de outubro, Megalópolis só havia levantado 10 milhões de dólares globalmente, segundo a revista Collider. Falta pouco mais de 100 milhões para empatar o investimento.
Isso não impediu que personalidades da indústria cinematográfica batessem cartão na pré-estreia brasileira, ocorrida na noite de terça-feira (29). O paulistano Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus e Dois Papas, fez questão de marcar presença, aproveitando a ocasião para ter acesso a Coppola pela primeira vez. “Eu adoro tudo que esse cara faz. É uma referência enorme para mim e tenho certeza de que vou gostar de Megalópolis”, comentou brevemente com a reportagem da Gazeta do Povo antes de adentrar a sala de exibição. Por sua vez, Coppola revelou ter se inspirado na obra do brasileiro, chamando Cidade de Deus de "fabuloso".
Incomodado com a indústria
Coppola falou seriamente sobre o estado atual do cinema. “Hollywood está morrendo por causa das pessoas que controlam as companhias e o que o público pensa”, avaliou durante a palestra. “É por causa do sistema de avaliação de quatro estrelas, de sites como CinemaScore e Rotten Tomatoes. São eles que decidem o que as pessoas devem assistir. Então, quem controla os estúdios têm apenas um trabalho: garantir que os débitos sejam pagos.”
As falas do cineasta não escondem seu incômodo, justamente no ano em que completou o trabalho que vinha elaborando em sua cabeça desde pelo menos 1982. Na palestra, citou que “não tem como faturar o mesmo tipo de dinheiro” que filmes de heróis, como Homem-Aranha, Venom e Guardiões da Galáxia. "O grande problema de Megalópolis é que todo mundo acredita que trabalhei nele por quarenta anos, o que não fiz". A película foi rodada entre 2022 e 2023.
Em entrevista à Gazeta do Povo no tapete vermelho, Coppola foi questionado se está triste em se aproximar do fim de sua carreira vendo a sétima arte nesse estado, e respondeu direto ao ponto: “Não estou desapontado com o momento do cinema, mas creio que certos tipos de filmes continuam os mesmos e outros, não. O cinema só muda e evolui quando não é feito para lucrar”.
Cidade dos sonhos
O diretor demonstrou viver um período bastante reflexivo, oferecendo pérolas de seu extenso conhecimento sobre cinema, arte, vida e até filosofia. “O grande pensador alemão Goethe disse que a ‘arquitetura é música congelada’, então se você quer controlar o tempo, seja um artista”, disse a certa altura.
No filme, o personagem César Catilina reflete muitas das visões de mundo do diretor. O protagonista é um arquiteto revolucionário que pretende reformar a cidade fictícia de Nova Roma com uma substância chamada “megalon”, sonhando em oferecer um futuro melhor para a humanidade. Ele é capaz de parar o tempo, algo que Coppola mencionou ter vontade de fazer. "Nós desperdiçamos tanto tempo como seres humanos. Nosso tempo é valioso", refletiu.
Esse senso de urgência permeia o longa-metragem, que acompanha uma civilização à beira de um colapso financeiro, político e social, quase como o nosso próprio mundo. Há políticos com segredos sujos, fofoqueiros que ganham destaque exagerado, o uso de deep fakes e até um satélite soviético capaz de destruir tudo. Do outro lado, há belíssimas referências a obras de nomes como o escritor Herman Hesse, o filósofo Ralph Waldo Emerson e ao estoicismo de Marco Aurélio.
De pai para filho
É nesse caldeirão em ebulição que surge outro tópico querido pelo cineasta: a família. Em certo momento do filme, Catilina é questionado por sua companheira sobre o que manterá após sua revolução urbanística, e ele crava sem titubear que será a instituição familiar. Para Igor Kupstas Janczukowicz, diretor da O2 Play, responsável por trazer Megalópolis ao Brasil, esse é um elemento importante.
“A obra do Coppola tem muito da importância da família. Na vida dele você vê isso. E acho que, para muitas pessoas, o cinema é algo passado de pai para filho”, explicou em entrevista, fazendo referência ao fato de o artista sempre ter apoiado sua filha, a também diretora Sofia Coppola, de Encontros e Desencontros e Priscilla.
A mensagem é delicada, podendo até passar batida na primeira hora do longa, que tem inúmeras cenas não-lineares com práticas imorais e hedonistas que seriam capazes de “fazer até Calígula corar”, como diria o cantor Morrissey. Mas quem aguentar o longa até sua conclusão não terá dúvidas quanto ao ideal de Coppola de sempre investir na próxima geração. Quanto à qualidade da obra, resta a cada espectador avaliar. Está longe de ser um novo Apocalypse Now!, mas não deixa de ter valor por oferecer um vislumbre dentro da mente de um dos diretores mais brilhantes da história do cinema.
- Megalópolis
- 2024
- 135 minutos
- Indicado para maiores de 18 anos
- Em cartaz nos cinemas