Não é exagero dizer que a Argentina parou quando O Clã chegou aos cinemas do país. Naquele fim de semana de agosto de 2015, o filme de Pablo Trapero estrelado por Guillermo Francella e pelo ídolo juvenil Peter Lanzani mobilizou sete vezes mais espectadores do que o segundo colocado, a irresistível comédia americana Ted 2. As razões para o sucesso dessa abertura, a maior da história do cinema argentino, são diversas e valem ser exploradas agora que Francella virou a face do audiovisual dos nossos hermanos – isso graças à explosão internacional do seriado cômico Meu Querido Zelador, que acaba de adicionar o youtuber Casimiro Miguel ao rol de fãs declarados.
O Clã está disponível no catálogo do Disney+ e segue tão impactante quanto em seu lançamento. Ali está a dramatização da história real da família Puccio, que na primeira metade da década de 1980 raptou diversos endinheirados de Buenos Aires. A peculiaridade desses sequestros é que as vítimas ficavam acomodadas na própria residência dos Puccio, em San Isidro, bairro nobre da capital. Com esposa, três filhos e duas filhas circulando pelo ambiente, Arquímedes Puccio liderava as ações, contando com o auxílio dos garotos mais velhos, de alguns capangas descerebrados e das costas quentes conquistadas nos anos em que trabalhou no serviço de inteligência que ajudou a instaurar o regime militar na Argentina. Quando revelado, o esquema deixou o país perplexo, algo fundamental para gerar interesse no filme de Trapero, que sonhava em abordar o tema desde que começara a estudar cinema.
Guillermo Francella já era um veterano quando foi escalado pelo cineasta para viver o protagonista – tinha 60 anos. A particularidade é que o ator se estabeleceu no campo da comédia, especialmente nos anos 1980 e 1990, quando participou de séries e filmes com muito humor físico, bordões sonoros e momentos de quebra da quarta parede (quando o personagem encara a câmera e solta uma gracinha para quem está do outro lado). Ele até já tinha mandado bem em papeis dramáticos, como o de Sandoval, coadjuvante no oscarizado O Segredo dos Seus Olhos (2009). Mas, para muitos, incluindo os brasileiros, que não conheciam quase nada da obra pregressa de Francella, O Clã foi o filme que consolidou sua imagem de artista de primeiro time. E num registro nada gozado.
Olhar profundo
Na Argentina, também havia grande curiosidade para ver como Peter Lanzani se sairia em seu primeiro trabalho no cinema. O rapaz, escalado para viver Alejandro Puccio, filho e braço direito do patriarca, fez carreira no país vizinho participando de novelas e musicais de enorme popularidade, desses em que os atores acabam gravando discos e saindo em turnê para divulgar as músicas da trilha sonora. Lanzani era um fenômeno juvenil e mostrou em O Clã que também tinha condições de triunfar como ator sério. Alejandro é o personagem mais complexo da trama, tendo de ser conivente com o pai em sequestros que envolvem pessoas próximas, até mesmo um colega com quem jogava rúgbi na seleção do país.
Não há qualquer alívio cômico no filme. O famoso olhar profundo de Francella é usado apenas para causar pavor em quem está no seu entorno, ainda que existam cenas mais ternas, em que ele ajuda as filhas com deveres escolares. Mesmo as famílias que faziam tudo que Arquímedes pedia, agilizando a grana do resgate sem envolver a polícia na negociação, não conseguiam rever seus entes com vida. A praxe do líder era pegar o dinheiro, executar o sequestrado e se livrar do cadáver. O desfecho da trama é surpreendente para quem não acompanhou o caso, com direito a uma chocante tentativa de suicídio de um dos membros do clã.
Dos vinte filmes que mais fizeram bilheteria na história da Argentina, seis têm Guillermo Francella no elenco – O Clã, obviamente, é um deles. Para se ter uma ideia do quão impressionante é isso, vale dizer que o astro Ricardo Darín só está em três desses vinte filmes. Aos 70 anos e após três exitosas temporadas de Meu Querido Zelador (dos craques Gastón Duprat e Mariano Cohn), o ator e torcedor fanático do Racing vive o auge de sua carreira. Andou sendo perseguido pela classe artística local por não se posicionar contra as políticas do presidente Javier Milei, mas isso não comprometeu seu momento profissional em nada. E sua brilhante atuação em O Clã foi peça importante nesse galgar de patamares.
- O Clã
- 2015
- 110 minutos
- Indicado para maiores de 16 anos
- Disponível no Disney+