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Cinema

Como as decisões morais transformaram ‘Vingadores’ em um sucesso absoluto

Tony Stark: mais uma criação de Lee, o herói vive conflitos psicológicos e dramas realistas e densos (Foto: Divulgação)
Tony Stark: mais uma criação de Lee, o herói vive conflitos psicológicos e dramas realistas e densos (Foto: Divulgação) (Foto: )

“Os mitos são feitos para que a imaginação os anime.”
Albert Camus, O Mito de Sísifo

Quando 'Vingadores: Ultimato' estrear, esta semana, a Marvel irá fechar um ciclo virtuoso que é um verdadeiro marco na indústria do entretenimento. Os números envolvidos nesse ciclo são impressionantes! Ao longo de mais de dez anos, são mais de vinte filmes interligados, que geraram aproximadamente 18 bilhões de dólares, envolveram um número de criadores e colaboradores inimaginável, uniu mais de trinta personagens entre protagonistas e coadjuvantes, e atraíram centenas de milhares de pessoas no mundo todo.

E eis aí a grande questão que propomos responder: como pode um grupo de personagens coloridos, que existem há aproximadamente oito décadas em suas versões em quadrinhos, ganhar novamente tanta importância para nosso imaginário? Como entender que personagens pouco conhecidos do grande público (alguns desconhecidos mesmo daquele público que lê quadrinhos) tenham conquistado a imaginação de toda uma nova geração de fãs?

Resumir tudo a estratégias de marketing ou algo do tipo é diminuir o fenômeno. Se assim fosse, outros estúdios, que investiram tanto ou mais em filmes e sagas similares, não teriam conseguido “fracassar” de forma tão esplendorosa.

Sem querer construir uma narrativa posterior que justifique eventos já passados, ousemos cá explorar o Universo Cinemático Marvel, desde suas origens no papel, seguindo pela reimaginação dos produtores, até, e em especial, as raízes culturais e simbólicas destes personagens.

1. Nós sempre acreditamos em super-heróis!

Nossa história começa na aurora do tempo, quando encontramos as primeiras imagens gráficas pintadas nas paredes das cavernas de Altamira, na Espanha, ou de Lascaux, na França. A gênese da arte e do cinema, dos quadrinhos e das narrativas visuais, e das artes plásticas, estão nesses desenhos e imagens que, mesmo após mais de 30 mil anos, ainda são vívidos, ainda nos encantam e intrigam. Nestas paredes, vemos caçadores e aventureiros – homens excepcionais a nos contar de seus tempos, de seus poderes, de suas maravilhas!

No Egito antigo, a própria escrita era pictórica – ousamos dizer que, nas paredes dos templos, temos verdadeiras histórias em quadrinhos, gravadas em pedra pela eternidade. Além de descrições visuais do cotidiano, de enterros, de passagens a outros mundos, novamente temos seres que ultrapassam os limites humanos. Mitologia? Claro. Mas eram capazes estes personagens míticos de saltar as pirâmides em um único impulso?

Da Grécia homérica chegam-nos bravura e forças descomunais, heróis, semideuses com qualidades, mas também suas fraquezas e covardias. Muitas vezes, o que sustenta esses homens é o sopro de algo divino, que desperta uma força interior e que também ressalta temperamentos.

Homens fantásticos vivendo aventuras inacreditáveis, tateando a imortalidade, protegendo sua comunidade, vingando-se com violência ou demonstrando magnanimidade no perdão; heróis derrotados pela própria arrogância; proscritos que se revelam líderes e reis: estas histórias acompanham a humanidade desde tempos imemoriais. Não é de estranhar, portanto, que no século XX uma nova forma de arte explorasse estes temas, estes mitos.

E essas fontes mitológicas que ecoam desde as origens esquecidas de nossa história cultural são imperecíveis e encontram novo sopro de vida, nova existência na era moderna através de novas mídias. Como explicou Ulrich Parr no capítulo 'Comics as Mythology of the Modern Age' (Quadrinhos: a Mitologia da Era Moderna, em tradução livre) do livro Funny Cuts (sem edição em português), a "cadeia de signos mitológicos transmite uma existência às personagens da mídia moderna que é independente de seus meios de transmissão: quadrinhos, filmes, videogames ou atores. Desta forma, essas figuras tentam alcançar o caráter sublime dos mitos dos antigos gregos e romanos, ou daquelas culturas tradicionais nas margens do mundo conhecido, que há muito vêm sendo incorporadas à mídia global. ”

E o mais importante para nós é reconhecer que os mitos persistem, que mesmo em um mundo onde a imaginação é supostamente árida, neste nosso mundo desencantado, onde, continua Parr, "as mitologias têm conotações negativas; nas esferas compensatórias da arte e nos meios de comunicação, elas recebem o status de bens invioláveis e imutáveis. "

Os quadrinhos são herdeiros diretos da arte pré-histórica, da arte egípcia, das narrativas homéricas – e de muitas outras fontes, povos e culturas. O mistério, os signos mitológicos, os ritos, aquilo que é narrado desde sempre na nossa história comum permanece e é reinventando, retomado, pelos grandes e pequenos artistas da nona arte.

2. Heróis de um Novo Tempo

“No momento em que há imaginação, há mito.”
Camille Paglia - Personas Sexuais

No começo da década de sessenta encontramos um editor chamado Stan Lee, que sentia-se entediado e desmotivado em seu trabalho à frente da Atlas Comics. Com pouco mais de quarenta anos, Lee era o principal, senão único, editor da empresa.

Ele estava cansado de escrever histórias simplistas. Sua vontade era dar mais realismo às narrativas dos quadrinhos, era de criar tramas em que os personagens não seriam meros repetidores de frases batidas e conformismo moralista. Imaginava heróis que fossem falhos, que demonstrassem medo e angústia, que tivessem mais a oferecer do que uniformes coloridos e aventuras pueris.

E se havia algo a ser feito, ele tinham exatamente o modelo a não seguir!

A DC Comics era a principal e mais importante editora de quadrinhos na época. Seus personagens eram inspirados diretamente nos heróis mitológicos da antiguidade. Os super-heróis da DC eram fantasias de poder quase total e suas ações beiravam o puro maniqueísmo. Havia o bem, havia o mal, e este era sempre derrotado.

Vários dos personagems da DC tem origem mágica ou mitológica: o anel do Lanterna Verde da Era de Ouro era mágico, os poderes do Shazam são mitológicos, e a Mulher Maravilha é criada por ninguém menos que Zeus, e por fim, o maior heróis de todos, o Superman, praticamente um semideus a viver entre os mortais. Já a origem dos heróis da Marvel será sistematicamente tecnológica, científica. Nascidos na Era Atômica, eles refletiam o maravilhamento — e o medo — desta nova era. Têm poderes limitados, e este costuma ter um alto preço, e last but not least, a linha moral que separa o bem do mal é mais tênue, sutil.

E, talvez mais importante, com o tempo e os anos 50, os personagens da DC se tornaram "bons-moços". Eles são “heróis educadores”, carregados de moralismo e boas intenções. Melhor exemplo dessa mudança é a personagem da Mulher-Maravilha. Criada por William Moulton Marston, a personagem explorava algo mais do que heroísmo, ela era um extravagante e sensual personagem a explorar ideias nada convencionais. Mas no fim da década de sessenta nada restava disso. A personagem, em um ato de romantismo chocho, abre mão de seus poderes e passa a viver no "mundo dos homens" cuidando de uma loja de roupas e participando de aventuras medíocres e banais. Ela era agora o modelo ideal da mulher conformada, que sabe qual o seu lugar.

Curiosamente um dos poucos heróis da DC Comics que não tinha superpoderes, e cuja origem não era ligada a nenhuma entidade mítica era Bruce Wayne, um homem comum que treinou sua mente e corpo para se tornar o Batman, cujas ações beiravam uma dubiedade moral que o diferenciava dos outros personagens da casa. Talvez aí tenhamos alguns dos elementos que fariam do personagem um dos mais populares da DC Comics ao longo das décadas.

Os heróis que Lee tinha em mente eram muito diferentes do que a indústria oferecia aos leitores: seus personagens vivem em uma luta interna com eles mesmos e com suas escolhas, eram antes de tudo, inconformistas, heterodoxos, iconoclastas. E isso era marcado de forma magistral pelo componente visual dos quadrinhos, os heróis da DC eram desenhados de uma forma sem graça, pouco espetacular e expositiva (ou seja, de um jeito conformado). Na Marvel, principalmente nos gibis de Jack Kirby, eles não se conformavam nem com os limites dos próprios quadrinhos nos quais eles eram desenhados: eles explodiam pra fora da página.

3. A Maravilhosa Trindade: Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko

“Cada ato deve ter uma consequência. Cada traço deve ter um sentido.”
Lawrence Weiner, Posters

Juntamente com Lee estava Jack Kirby, uma das grandes figuras que influenciaram profundamente a história dos quadrinhos, e que trabalhara com Lee, no início da década de quarenta. Foi Jack Kirby, em parceria com Joe Simon, que criara um dos mais icônicos personagens do mundo dos quadrinhos: o Capitão América.

A união de Lee e Kirby, duas mentes brilhantes, daria o tom para toda uma nova geração de personagens e daquela que é considerada a era de ouro da Marvel Comics. O trabalho de Lee e Kirby influenciaria artistas, desenhistas e roteiristas mundo e décadas afora, e essa influência não se limitaria ao universo dos quadrinhos.

A revolução teve início com a criação de quatro personagens que, segundo Lee, eram: “reais, vivos, respiravam e tinham relações pessoais que seriam interessantes tanto para o público quanto para mim! ”. Em novembro de 1961 chegava às bancas dos Estados Unidos um novo grupo de heróis, O Quarteto Fantástico. Reed Richards, Sue Richards, Ben Grimm e Johnny Storm nasceram da imaginação visual única de Jack Kirby e, principalmente, da angústia de Lee como artista — uma angústia por inovação, por criatividade e, por que não, por amor à arte dos quadrinhos.

Existia heroísmo, coragem e honra característicos dos quadrinhos mais convencionais – mas também drama, ressentimento e rancor: era uma nova forma de se enxergar os super-heróis, explorando as sombras da psiquê humana. Para deixar isso ainda mais marcante, nas primeiras histórias do Quarteto, os heróis não usam uniformes, algo que fugia da tradição dos quadrinhos.

Lee e Kirby quiseram chamar a atenção para os dramas interiores dos personagens, como se eles ousassem dizer: o heroísmo não depende de uniformes ou superpoderes, mas de algo que você tem dentro de si, e que pulsa e vibra, esperando o momento para explodir. E se o drama interior era importante para esta nova geração de heróis, nada como ter um personagem cuja personalidade está dividida, em guerra consigo mesma: assim nascia o Hulk.

Em maio de 1962, Stan Lee e Jack Kirby, apresentaram ao mundo esse herói que não apenas não usava uniforme, mas na verdade andava em andrajos quando assumia sua forma "heróica". A personalidade dividida entre o cientista Bruce Banner e o monstro cinza/esmeralda chamado Hulk era um passo na busca por uma audiência mais madura, com interesses mais profundos do que a mera explosão de cores e ação. O Hulk é o próprio retrato antecipado de uma América cindida, que começava a enxergar as sombras de sua história e que terminaria por explodir em sérios conflitos internos.

Em agosto daquele ano, muito antes do primeiro disco do Led Zeppelin sequer existir, Lee e Kirby apresentaram o primeiro super-herói inspirado nas tradições nórdicas, o Poderoso Thor, que novamente tinha uma personalidade em conflito: Donald Blake, um médico fragilizado por uma deficiência física, e seu alter ego, o Deus do Trovão, que é condenado a viver no corpo do médico para aprender uma lição de humildade, e assim reconquistar seu lugar de direito no reino de Asgard.

Se no caso de Hulk/Banner, temos uma personalidade dividida entre a fúria irracional e a racionalidade, entre o bruto e o gênio, Thor/Blake trazem a dicotomia entre a húbris e a humildade, entre aquilo que nos torna dignos dos deuses e aquilo que nos torna menos do que humanos.

O que Lee e Kirby vão construindo é este universo único, em que as verdadeiras batalhas não se dão apenas contra vilões estereotipados, mas dentro dos próprios personagens; em seus momentos mais íntimos, descortinamos suas vitórias e derrotas. E nenhum quadrinho traria tanta tragicidade em suas páginas como aquelas protagonizadas pelo jovem Peter Parker.

Inicialmente, Stan Lee havia pensado em Jack Kirby para desenhar as histórias de um jovem e tímido rapaz que, ao ser picado por uma aranha radioativa, desenvolve poderes extraordinários. Mas, ciente de que o personagem precisava de traços menos heróicos, menos extrovertido e mais intimista, Lee chama para a tarefa Steve Ditko, que possuía o temperamento e a técnica de que o personagem precisava.

Peter Parker era o herói — ou anti-herói — ideal para toda uma nova geração de leitores, especialmente para os jovens que viviam naqueles anos pós-guerras, inconscientes das benesses de que desfrutavam, afinal, a Segunda Grande Guerra era uma lembrança já longínqua; a guerra da Coréia, uma experiência rápida demais; e a Guerra do Vietnã ainda não apontava no horizonte. Ali estava uma geração que não tinha nada a temer, e cujas responsabilidades pareciam ínfimas diante de toda as facilidades de uma época dourada. E Ditko faria do personagem um dos mais trágicos e humanos jamais vistos. Sua origem é marcada pela irresponsabilidade, arrogância e egoísmo, que culminam com a morte de seu tio e o nascimento do Homem-Aranha.

O novo título conquistou leitores e rapidamente se tornaria o número 2 de vendas da casa, perdendo apenas para o Quarteto Fantástico.

Então, no fim daquele ano miraculoso, um último herói nasceria: Tony Stark. Mais uma criação de Lee, o herói viveria conflitos psicológicos e dramas realistas e densos que chocariam leitores mundo afora, em especial por ser ele um personagem com uma personalidade bem pouco simpática. Tony é egoísta, ganancioso, pernóstico, um bilionário preocupado apenas em como vender mais armas e ganhar mais dinheiro com sua empresa. Mesmo a armadura do Homem de Ferro é criada mais por necessidade do que por uma ideia de heroísmo. É somente ao reconhecer suas falhas pessoais, apenas em sua luta interior para corrigir estas falhas, que Tony será capaz de se tornar um verdadeiro herói.

Uma das coisas mais interessantes desses novos personagens – e que dava todo um sabor de realismo às aventuras – é que todos eram habitantes da cidade de Nova York: o Quarteto vivia em Manhattan, o Homen Aranha, no Queens, e assim por diante. Isso fazia da cidade não apenas palco de aventuras e dramas, mas um personagem mesmo das histórias. Além do mais, em breve muitos dos principais ícones da cidade ficariam marcados para sempre nas páginas coloridas destes quadrinhos em narrativas memoráveis e trágicas, belas e soturnas.

Esse amor por Nova York teria paralelo apenas no cinema de Woody Allen e nas obras de Will Eisner – autores que fariam verdadeiras homenagens à cidade que nunca dorme. Mas foram Stan Lee, Jack Kirby e todos esses criadores dos quadrinhos que primeiro homenagearam a Grande Maçã e seus prédios, vielas e habitantes. E a importância desta relação entre a cidade e seus personagens ultrapassaria os limites imaginação quando, em 1989, é revelado o endereço ‘real’ do Peter Parker, no Queens. Pois não é que em 2002 o New York Times descobre que o endereço não só existe, como encontraram uma família Parker morando por lá?

Através do realismo e da modernidade desses personagens, nossos criadores atualizaram a nossa relação com a mitologia, com o desconhecido. E, se no passado o desconhecido era a natureza, na era moderna o desconhecido é a tecnologia: é ela fonte de esperanças, medos e que por si só, como resume Pfarr, "não é mais racional que os mitos que substitui."

Desse modo, a Atlas Comics, antiga Timely, encontrava seu novo caminho, graças ao trabalho e criatividade de Stan Lee e da arte de Jack Kirby e Steve Ditko, nomes que marcaram esta nova fase de forma indelével — mas ainda faltava algo. E esse algo nasce das páginas de uma revista que parecia pagar tributo aos velhos personagens da empresa: seria com uma revista de guerra, que trazia as aventuras do Sargento Fury e o seu Comando Selvagem, que começaria oficialmente a “Marvel Age of Comics”.

Foi nas páginas do Comando Selvagem, que a dupla Lee e Kirby introduziram o primeiro herói negro dos quadrinhos: Gabriel “Gabe” Jones, que seria um personagem recorrente nas aventuras futuras de Nick Fury.

Stan Lee ainda tinha outras novas apostas que marcariam definitivamente aquela fase de explosão criativa. Aprofundando ainda mais o teor social de suas aventuras, Lee e Kirby desenvolveram a história de um novo grupo de heróis: cinco adolescentes que, com seus dons mutantes, são tanto ameaça quanto redenção para a humanidade. Nas futuras páginas dos X-Men, a Marvel encontraria um dos seus maiores e mais importantes sucessos, especialmente por apresentar dramas que, em breve, explodiriam na própria terra da liberdade.

Em meio a tantos personagens novos, Stan Lee e Bill Everett — um veterano desenhista da casa e o criador de Namor, o Príncipe Submarino — tiveram a ideia de um jovem herói, Matt Murdock, advogado cego que desenvolve habilidades únicas após um acidente radioativo, e protege as ruas de Nova Iorque vestido de Demônio. Era o Demolidor, que anos depois ganharia um protagonismo único ao ser revisitado por Frank Miller.

E como se tudo isso ainda não fosse suficiente, Lee e Kirby criaram dois super-heróis que foram os primeiros a representar um público que sempre lera quadrinhos, mas que nunca fora representado com real dignidade e espírito heróico: nasciam o Pantera Negra, rei e protetor de Wakanda, e Sam Wilson, o Falcão, um herói nascido na urbana e violenta cidade de Nova Iork.

Mas o grande marco da época foi quando Lee se uniu a Kirby para lançar um grupo formado por heróis que até aquele momento viviam suas aventuras de forma solitária: Thor, Homem de Ferro, Hulk, Homem-Formiga e Vespa. Na primeira aventura, eles enfrentaram ninguém menos do que Loki, o meio-irmão de Thor, em uma aventura em que a arte de Kirby resplandece a cada página. Nasciam os Vingadores!

Para fechar esse período de novos heróis e histórias, no qual brilhou a criatividade de Lee e seus colaboradores – especialmente Jack Kirby e Steve Ditko –, uma lenda, um símbolo de uma era que marcou a primeira fase da empresa retornou: O Capitão América é resgatado do gelo — e com ele, toda uma geração de novos e velhos heróis, novos e velhos leitores, reencontra esperança e sentido. O personagem criado na década de quarenta pela dupla Joe Simon e Jack Kirby estreia no quarto número da revista dos Vingadores, e, como símbolo de uma época onde o conflito entre o bem e o mal era claro, Steve Rogers era agora o "herói deslocado do seu tempo".

Olhando para aqueles anos, percebemos o quanto a Marvel Comics antecipou muito do que aconteceria nos Estados Unidos nas décadas seguintes: o tom amargo das histórias; o sentido de responsabilidade individual; e a percepção de que, apesar do heroísmo e da busca pelo justo e pelo bem, havia algo que não se adequava, havia dúvidas e incertezas, e isso era algo que fazia daqueles heróis símbolos de uma nova América, de uma nova arte.

Os quadrinhos não eram mais apenas coisa para crianças. Stan Lee enxergou não apenas o potencial destes novos personagens, mas captou, como ninguém, uma mudança cultural profunda nas páginas da Marvel Comics: a explosão do rock’n’roll, a violência racial, o desconforto com a ideia do heroísmo e mais do que tudo, foi nas páginas da Marvel que uma nova geração de criadores encontrou espaço para seu talento. Os quadrinhos não mais eram só um meio de sobrevivência para desenhistas e roteiristas, mas um meio de expressão válido e respeitável, com possibilidades criativas reais, e que refletiam angústias e dramas pessoais.

4. Ultimate Marvel: iconoclastas de um novo universo.

O grande desafio do produtor Kevin Feige e dos Estúdios Marvel era transmitir a essência dos personagens para o cinema. Mais ainda, após mais de sete décadas, diante de dezenas de personagens, linhas históricas diversas, mudanças e renascimentos, quais caminhos seguir, quais escolhas estéticas eram as melhores, quais conceitos e premissas eram imutáveis e quais teriam que ser adaptadas para uma nova audiência; e além disso, como garantir que o público base de leitores validasse o que seria construído com personagens de carne, osso e CGI (Imagens geradas por computador, na sigla em inglês)?

A reposta inicial estava em uma série de quadrinhos chamada Ultimate Marvel, e que a editora lançara alguns anos antes e que reimaginava os personagens surgindo em um novo milênio. Capitaneada pelo então editor Joe Quesada, a equipe de roteiristas e artistas formada por nomes como Brian Michael Bendis, Mark Bagley, Mark Miller e Brian Hitch, tinha a missão de criar um ‘novo universo Marvel’. Oito anos antes do primeiro filme do Universo Cinemático Marvel, esses nomes lançaram um novo olhar sobre nossos heróis, que se inspirava nos trabalhos pioneiros de Stan Lee, Kirby e Ditko, mas que buscava sua própria personalidade, e esta era baseada na busca pelo realismo que, ao longo dos anos, parecia ter se diluído nas revistas de linha.

Os artistas buscavam, cada um à sua maneira, reinterpretar os arquétipos personagens, seja revalidando ou criticando premissas históricas, seja buscando o atemporal e o clássico, ou inserindo os personagens em um mundo de terror e paranoia, introduzindo esperança, niilismo e política em novas e impactantes aventuras. O que importava era reimaginar os personagens, reimaginar seus dramas e paradoxos, e assim dar nova vida aos mitos modernos.

Neste universo Ultimate, Homem-Aranha, O Quarteto Fantástico, os X-Men, e em especial os Vingadores (nesse contexto, chamados de Os Supremos), recebiam um tratamento que há muito não se via nas HQs convencionais. O Homem-Aranha era concebido mais como uma série de TV moderna do que como um gibi; os X-Men recuperavam muito de sua crítica social/racial, e por fim, Os Supremos recebiam um tratamento que, não sem erro, era cinematográfico!

“A possibilidade de se fazer um filme dos Vingadores não estava no radar de ninguém na época", Brian Hitch disse em uma entrevista para a Vulture Magazine, "então foi isso que dissemos, que era o nosso filme dos Vingadores.” Foram Millar e Hitch que criaram ideias e conceitos arrojados que influenciariam diretamente o surgimento e desenvolvimento do Universo Cinemático da Marvel.

Os criadores da linha Ultimate traziam uma olhar criativo, ousado e moderno para personagens clássicos, e as histórias e desenhos buscavam já uma clara abertura para adaptações para a tela grande, afinal, assim como nas suas origens, o cinema influenciava os quadrinhos e vice-versa.

Mas havia aí um outro desafio. Alguns personagens da Marvel, àquela altura, haviam sido licenciados para outros estúdios: notadamente o Homem Aranha para a Sony e os X-Men para a Fox, e ambos, já havia algumas boas décadas, eram essencialmente os quadrinhos mais vendidos e populares da Marvel. Portanto, sobrava agora aos estúdios Marvel, uma série de personagens que não eram lá tão conhecidos do grande público. Pode parecer ridículo falar isso agora, mas lá por 2005/2006, era difícil encontrar alguém que conhecesse minimamente personagens como Tony Stark, Natasha Romanoff, mesmo Steve Rogers (e o que dizer de outros menos conhecidos mesmo dos supostos fãs de gibi: Peter Quill? Stephen Strange? Carol Danvers? Nomes que, à época, eram obscuros, e que hoje estão na ponta da língua de qualquer criança!).

Tudo iria depender do primeiro filme do estúdio, e do apelo, carisma, ousadia e autoconfiança de seu protagonista.

5.Os heróis em conflito chegam às telas

“O cinema é o supremo gênero apolíneo, coisa criada e criador de coisas, máquina de deuses.”
Camille Paglia, Personas Sexuais

Quando os primeiros riffs da música Back in Black do AC/DC explodiram nos sistemas de som dos cinemas do mundo em 2008, ali se iniciava não apenas um filme, mas uma jornada que envolveria múltiplos personagens e linhas narrativas, expandiria o universo Marvel no cinema até o limite da imaginação e, mais de dez anos depois, chegaria ao seu ápice com ‘Vingadores: Ultimato”.

Com direção de John Favreau e protagonizado pelo carismático Robert Downey Jr., 'Homem de Ferro', o primeiro filme dos estúdios Marvel, teve um impacto na indústria do entretenimento e uma longevidade que ninguém apostaria na época. Foi um momento raro, onde ator, personagem e direção se harmonizaram perfeitamente.

A marcante e icônica cena em que Tony Stark confessa ser o Homem de Ferro talvez seja o maior símbolo desta sinergia excepcional. Nascida do improviso de Robert Downey Jr., ela representava tudo o que a Marvel prometia para seus fãs: surpresa, espetáculo, assombro. E a conquista mais importante foi conseguir a validade dos fãs de quadrinhos, validade necessária, pois legitimava o estúdio perante o público leigo, garantindo um crescimento orgânico de novos fãs (não necessariamente apaixonados por gibis), abrindo assim as portas para novos voos cinematográficos.

Arrisco dizer que nem mesmo Kevin Feige, o produtor todo poderoso dos filmes dos estúdios Marvel, tivesse em mente o legado que estava a ser construído; sem subestimar o produtor, há aqui algo de mágico a agir: eram os arquétipos, os mitos modernos a irromper na tela com vibração, energia e panache!

E o sucesso foi tão acachapante que o estúdio pode se dar ao luxo de experimentar, brincar com as fórmulas do gênero, subverter clichês. Se personagens como Capitão América ou Thor possuem filmes relativamente mais convencionais, temos outros, tais como 'Os Guardiões da Galáxia', o 'Homem-Formiga' e 'Doutor Estranho', que exploram diferentes e inusitados modos de representar a jornada do herói.

Ao longo de pouco mais de uma década, os estúdios Marvel — agora parte do conglomerado Disney — fizeram algo inédito na indústria do cinema: a construção de uma saga colossal contendo pontos de contato em todos os seus episódios, ligando personagens, conflitos e acontecimentos de forma a podermos dizer, sem medo de errar, que estamos diante de um único, imenso e operístico filme composto de vinte e dois filmes menores — para efeito de comparação, isso é algo em torno de quatro vezes mais do que Wagner fez em sua tetralogia do anel dos Nibelungos, e sete vezes mais que a adaptação de Peter Jackson para o Senhor dos Anéis!

E vai ser justamente no conjunto da obra, por assim dizer, que os estúdios Marvel conseguiram seu maior triunfo. Ao entender que mais importante do que apontar esse ou aquele super-herói como protagonista, temos um grupo único de personagens que se completam, antagonizam, e que devem descobrir em suas jornadas pessoais, aquilo que lhes é comum – sua humanidade.

Devemos lembrar ainda que o essencial nos filmes é algo que sempre foi intrínseco aos personagens dos quadrinhos Marvel: antes mesmo de quaisquer habilidades sobre-humanas, o que importa neles é que possuem uma profunda, ainda que dormente, integridade moral. Portanto, o heroísmo no universo Marvel não é uma questão de “poderes”, mas de decisões morais, que todos, em maior ou menor grau, podemos tomar em nossas vidas.

Estes personagens possuem falhas, eles erram, são deslocados de seu tempo e lugar, enfrentam inimigos internos tão ou mais poderosos do que os vilões que esmurram.

Olhemos para os nossos Vingadores: Tony Stark/Homem de Ferro, um gênio que peca pela húbris, preso a seus medos e paranoias; Steve Rogers/Capitão América, um homem que sacrificou sua vida inteira para salvar seus semelhantes e que precisa agora reencontrar seu lugar no mundo; Thor, um deus imortal que viu tudo o que tinha — mãe, pai, irmão e pátria — ruir diante de seus olhos.

Estas falhas, exílios e fragilidades, estão presentes em todos nós de alguma maneira: todos perdemos alguém que amamos, todos erramos e caímos por conta de nosso orgulho; todos fazemos escolhas erradas em algum momento.

E a grande lição destes mitos contemporâneos é que devemos persistir, que devemos nos reerguer sempre, e que nossa verdadeira luta, aquela contra o medo e a angústia que nascem da desesperança, só pode ser vencida quando nos reconhecemos em nossa humanidade comum.

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