O filme “Cães de Guerra” estreou em 2016 com Jonah Hill no papel de Efraim Diveroli, um imprudente garoto de Miami Beach que larga a faculdade e decide vender armas e munição para o Pentágono. É uma comédia, mas a história da vida real não é matéria para riso: a empresa de Diveroli eventualmente ganhou um contrato de US$ 298 milhões com o Departamento de Defesa americano, mas mandou equipamentos abaixo do padrão de países do leste europeu para o Afeganistão e se encontrou no centro de uma investigação criminal.
A trajetória de ascensão e queda de Diveroli foi coberta com atenção depois que os malfeitos da AEY, sua empresa, foram descobertos. Eles tiveram seus perfis traçados em um relatório de 28 páginas em 2008 no Comitê de Supervisão e Reforma do Governo da Câmara dos Deputados e em um artigo de março de 2011 na revista Rolling Stone que se embasa pesadamente em entrevistas com o ex-colega de Diveroli David Packouz.
A AEY ganhou seu maior contrato em janeiro de 2007 para mandar munições para o exército afegão, mas forneceu munição chinesa defeituosa e ilegal por através da Albânia. A prática foi exposta pelo New York Times em março de 2008 e levou Diveroli, Packouz e dois outros a serem indiciados, de acordo com o relatório da Câmara.
Diveroli declarou-se culpado em 2009 de uma única acusação de conspiração. Foi sentenciado em 2011 a quatro anos de prisão e evitou um período adicional de dois anos por uma acusação separada relacionada a armas quando um juiz decidiu que ele podia cumprir as duas sentenças concomitantemente.
Confrontados com esse tipo de passado, alguns condenados desaparecem rumo à obscuridade. Mas não Diveroli. Com 30 anos, ele saiu da prisão e terminou um livro de memórias chamado “Once a Gun Runner...” (uma vez tendo sido comerciante de armas..., sem tradução para o português), publicado em maio de 2016.
Jonah Hill e Miles Teller são maconheiros traficantes de armas em “Cães de Guerra”
Efraim Diveroli, o desajeitado e socialmente inepto celerado que é o centro de “Cães de Guerra”, se cerca de parafernália do filme “Scarface”. Uma imagem de Tony Montana e seu “amiguinho” está pendurada na parede do escritório de Efraim em Miami, uma prestadora de serviços de baixo custo no ramo militar chamada AEY; quando Efraim dá a seu parceiro e melhor amigo, David Packouz (Miles Teller), um presente sentimental, é uma granada banhada em ouro, inscrita com uma citação do filme: O Mundo é Seu.
O pôster de “Cães de Guerra” lembra inclusive aquele de “Scarface”, o que oferece a primeira pista de por que o novo filme não funciona. O co-roteirista e diretor Todd Phillips – mais conhecido pelas comédias “Se Bebber Não Case” – não parece estar seguro se está celebrando a ocupação duvidosa de Efraim e David ou censurando-a.
Para um filme sobre um mundo gonzo e vertiginoso de tráfico de armas, de passar a perna no Pentágono e de fumar massivos cachimbos de maconha enquanto se vive luxuosamente em South Beach, “Cães de Guerra” tem uma curiosa falta de energia e pegada. Baseado em um artigo da Rolling Stone sobre a carreira lucrativa de comerciantes de armas no mercado cinza dos Diveroli e Packouz da vida real, “Cães de Guerra” se mantém à distância dos personagens, receoso de nos envolver nos prazeres e prosperidade de sua ascensão, e por isso fazendo sua queda parecer distante, insignificante e indiferente.
Com um roteiro atropelado e com um ritmo irregular, deve-se admitir que “Cães de Guerra” contém mais do que alguns momentos infecciosamente engraçados – usualmente cortesias de Jonah Hill, que interpreta Efraim com uma imensa cintura, cabelo lambido para trás e uma risada nervosa e aguda – e uma trilha sonora irresistivelmente contagiante, que inclui o que pode ser o uso mais crasso de “Fortunate Son” já cometido em um filme.
(É o Packouz da vida real quem canta uma versão acústica de “Don’t Fear the Reaper” em um asilo em uma cena no começo do filme.)
Uma cena memorável, dos protagonistas chapados tentando convencer alguns oficiais responsáveis por contratos do Pentágono em um escritório em Illinois, é encenada para máxima absurdez no estilo irmãos Coen.
Mas para cada acerto há o mesmo número de erros, seja na forma de um ritmo preguiçoso ou a narração sem lustro e monótona de Teller, na qual ele descreve tudo em termos de “X, mas Y”. Uma feira de negócios em Las Vegas à qual ambos atendem para fazer contatos de alto poder aquisitivo é “Comic-Con, mas com granadas”. Um site do governo para potenciais contratos de fornecimento de armas é “eBay, mas para guerra”.
Então, ok: “Cães de Guerra” é “Os Bons Companheiros”, mas sem nada da pulsação, do detalhe antropológico ou da sedutora velocidade desse filme: não “Goodfellas”, mas “Dude-fellas”.
Nominalmente a história de como Packouz se reuniu com seu melhor amigo do ginásio para fazer milhões fraudando o sistema de fornecimento de equipamento militar durante os anos Bush-Cheney (Haliburton tem seu papel), “Cães de Guerra” frequentemente parece pouco mais do que dois caras curtindo a “broderagem” em locais exóticos, repetindo o clichê de conflitos da vida real servirem como pano de fundo para americanos bancarem os ousados e, finalmente, se autorrealizarem. (Para exemplos de cartilha do formato, veja os filmes recentes “Rock em Cabul” e “Uma Repórter em Apuros”.)
O passatempo sórdido de Efraim e David eventualmente os levará a Fallujah e aos mais abjetos recintos da Albânia, onde confusões se seguem com a mesma inevitabilidade da volta por cima dos meninos.
Todos aqueles acenos a DePalma e os quadros congelados no estilo Scorcese deveriam telegrafar em alto e bom som para onde esta história está indo: o acerto de contas, quando chega, deixa a audiência sentindo-se esvaziada e deprimida, e muito mais cínica do que quando entrou. Isso não é necessariamente inapropriado, mas o pessimismo parece não merecido em um filme que nunca decide firmemente com quem está sua simpatia.
“Para o registro, AEY não representa nada”, Efraim diz a um empregado em certo ponto. O mesmo pode ser dito a respeito de “Cães de Guerra”.
Processando todo mundo
Ele também ajudou a começar uma empresa de mídia – chamada Incarcerated Entertainment – e entrou com uma ação nessa primavera contra virtualmente todo mundo envolvido na produção de “Cães de Guerra”, alegando que material de “Once a Gun Runner...” fora usado para escrever o manuscrito do filme sem sua autorização.
A ação alegou que o produtor de cinema Elliot Kahn assinou um acordo de confidencialidade como parte de um acerto para emplacar o livro em um potencial filme em 2014, quando Diveroli estava na prisão. A petição também afirma que o autor do artigo da Rolling Stone, Guy Lawson, realizou uma entrevista na prisão com Diveroli e disse que se seu artigo sobre Diveroli e Packouz ganhasse fôlego, “poderia se tornar um livro do qual ele sugeriu que ambos, Lawson e Diveroli, poderiam ser coautores.”
Diveroli escreveu um manuscrito para seu livro em janeiro de 2012 e “expressou para o senhor Lawson” a vontade de que fosse mantido confidencial, alegou a ação. O ex-traficante de armas acreditava que eles finalizariam sua colaboração no livro quando ele fosse solto da prisão no começo de 2015, afirmou a ação. E acrescentou que, em uma mensagem de junho de 2014, Lawson reconhecia que não agiria sem o consentimento do condenado.
Em vez disso, a ação alegou, Lawson foi adiante e escreveu um livro sobre a vida de Diveroli chamado “Arms and the Dudes” (armas e os caras, sem tradução para o português) e recebeu créditos como único autor. Lawson também chegou a um acordo com um roteirista, Todd Phillips, nos quais os direitos para seu artigo na Rolling Stone – que não lista Diveroli como um autor – foram negociados para um potencial filme.
Lawson não é parte no processo e não pode ser encontrado para comentar. Aqueles que são incluem Phillips, que trabalhou como diretor, a Warner Brothers e o ator Bradley Cooper, que trabalhou como produtor no filme e aparece nele no papel de Henry Girard, um perigoso traficante de armas estrangeiro com quem Diveroli faz negócios.
A ação pede que uma corte da Florida condene os réus por danos monetários e “royalties razoáveis” dos lucros do filme, danos punitivos adicionais e a destruição de todos os produtos e artigos de marketing com o nome de Diveroli, que tem sido usado na divulgação do filme como “baseado em uma história real”
Liberdade de expressão
A Warner Brothers e os outros réus no processo entraram com um pedido de arquivamento do caso em julho de 2016, argumentando que não tem fundamento e que a Incarcerated Entertainment não pode indicar nenhum documento que impedia Lawson de divulgar qualquer material que Diveroli tinha lhe fornecido.
O pedido também argumenta que a ação não “indica um fato privado sequer” que os criadores de “Cães de Guerra” tiraram do manuscrito de Diveroli. Eles acrescentam que um filme é geralmente resguardado pela Primeira Emenda, que protege a liberdade de expressão, especialmente quando dramatiza eventos da vida real.
Diveroli não respondeu a um pedido de entrevista e recentemente recusou outros convites que mencionavam o processo em andamento. Em sua conta no Twitter, ele lança ataques contra “versões não autorizadas da minha história de vida” e anuncia seu livro como uma “memória que conta tudo”.
O caso não é o único envolvendo Diveroli a tramitar no judiciário. Como um recente artigo do Miami New Times descreve, Packouz e outro ex-parceiro de negócios, Ralph Merrill, processaram Diveroli por dinheiro que dizem ainda ser devido a eles pelo contrato de 298 milhões de dólares que a AEY conseguiu em 2007. Diveroli saiu da prisão ainda rico em virtude desse contrato, eles alegaram.
“É importante que todo mundo saiba que o livro de Efraim é uma obra de ficção”, Packouz disse ao jornal. “É a obra de um megalomaníaco, de uma pessoa perturbada.”
Packouz foi sentenciado a prisão domiciliar no processo criminal – recebendo uma sentença reduzida em parte porque testemunhou contra Diveroli.