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Detalhe da capa do livro "A Vegetariana", de Han Kang
Detalhe da capa do romance “A Vegetariana”, de Han Kang| Foto: Reprodução

Desde o início da literatura, das primeiras narrativas míticas deixadas por escrito, o homem passou a ter uma espécie de espelho para o qual olharia vezes sem conta e poderia dizer “é, somos assim”. Algumas vezes, a imagem refletida seria diferente, melhorada, aumentada ou enriquecida de possibilidades – como podemos confirmar a partir das obras de Shakespeare, Dante ou Dostoievsky – e noutras realista, como as “fotografias” criadas por Balzac ou Machado de Assis.

O fato é que quando abrimos um livro de literatura, pensemos nisso ou não, tenhamos consciência disso ou não, estamos conhecendo uma história e, ao mesmo tempo, a nós mesmos. Seja porque nos identificamos com o protagonista, seja porque nos opomos a ele, enquanto leitores assistimos a uma sequência de imagens que, próximas ou distantes de nossas vidas pessoais, refletem a nós mesmos – “de te fabula narratur”, ensina a locução latina: a história fala de você.

E, se toda a literatura pode ser vista dessa maneira, como reflexos justapostos da vida humana, o que fazer quando não gostamos da imagem no espelho? Quando a história narrada é constrangedora, ou provocante demais, ou repleta de cenas de desespero, angústia e desilusão? O exemplo mais atual é da autora sul-coreana Han Kang, premiada na semana passada com o Nobel de Literatura, e conhecida principalmente pelo seu romance A Vegetariana (Todavia, 2020). A história acompanha Yeonghye, uma mulher casada que decide parar de comer carne, sem dar explicações e de uma hora para a outra.

Autora sul-coreana de 53 anos Han Kang
A autora sul-coreana de 53 anos Han Kang| Divulgação

Logo na página 9, somos apresentados a essa personagem da seguinte forma. “Nunca tinha me ocorrido que minha esposa era uma pessoa especial até ela adotar o estilo de vida vegetariano. Para ser bem franco, não me senti atraído por ela na primeira vez que a vi. Estatura mediana. O cabelo não era nem comprido nem curto. Tinha a pele levemente amarelada, as maçãs do rosto um pouco pronunciadas. Vestia-se de forma neutra, como se tivesse algum tipo de receio de se destacar”.

A primeira parte da obra, portanto, é narrada pelo marido, um homem sem grandes qualidades, mediano em quase tudo, contrariado com as mudanças sofridas pela mulher e que o atingem diretamente. Quanto a Yeonghye, vê-se claramente se tratar de alguém bastante comum (uma pessoa medíocre, diriam os mais críticos), receosa de qualquer destaque individual. Mas é ela a protagonista dessa história.

O romance é dividido em três partes, sendo a primeira a da mudança repentina da protagonista e seus efeitos nas relações familiares. Na segunda parte, somos conduzidos por um narrador onisciente capaz de descrever os pensamentos luxuriosos do cunhado da protagonista, um artista obcecado com a ideia de pintar o corpo nu de Yeonghye (com quem acaba se envolvendo intimamente). É a irmã mais velha, traída duplamente, quem assume papel de destaque nas páginas finais de A Vegetariana, num tom melancólico e desesperançoso a respeito da vida e do futuro.

Domínio da narrativa

A escrita de Han Kang é elegante, enxuta, sem cair em sentimentalismos (o que grande parte dos escritores atuais não consegue evitar). Se por um lado alguns de seus críticos a consideram jovem (ela tem 53 anos) ou injustificada para o prêmio com que fora laureada na semana passada, por outro não podem chamá-la de escritora ruim. Kang tem o domínio da narrativa, e se a sua obra não pode ser comparada com outras do passado, de autores também laureados, como Saul Bellow ou Octavio Paz, não é pela menor qualidade da escrita em si, mas das imagens representadas. Quero dizer, como contadora de histórias, a autora de Atos Humanos (2014) e O Livro Branco (2016) não deixa a desejar, e talvez o mal-estar que cause em alguns de seus leitores seja em razão do “quê”, e não do “como” são narrados seus romances. E, dessa forma, voltamos a falar de espelhos.

Não quero que o leitor tome este texto como saudosista ou antimoderno, mas considero inegável certa diminuição do horizonte de consciência sofrida pelas gerações mais recentes. Tanto no cinema quanto na música, no teatro e, evidentemente, na literatura, é comum fazermos comparações de obras atuais com obras passadas. Nessas comparações, sentimos um gosto amargo na boca por qualquer coisa perdida no tempo. Onde está Nelson Rodrigues hoje, ou Heitor Villa-Lobos, para citar dois grandes brasileiros? Quem são seus herdeiros, quem mantém o fogo da tradição, quem são os intelectuais que tornam presentes certos valores universais para a geração de agora? Dito de outro modo: não carecemos de novas (ou atualizadas) imagens da grandeza, de arte chamada “elevada”, de histórias e personagens capazes dos atos mais belos, verdadeiros e bons? E, se isso for verdade, se por acaso vivemos um tempo de “baixeza cultural”, não era justamente essa a maior justificativa para produzirmos outra arte, qualquer coisa à altura das anteriores?

Han Kang preferiu ou só pôde tomar outro caminho: o do realismo. Sua protagonista de A Vegetariana é uma mulher vulgar que se torna especial por uma espécie de sonho ou loucura assentida. Já na parte final do livro, passa a se identificar como planta, escolhendo o sol como fonte de nutrição, derramando seiva a partir do próprio sexo, negando qualquer tipo de comida que desejem lhe dar. Em razão de suas angústias, solidão e inaptidões para a vida, a maioria de nós, seus leitores, sente um mal-estar ao longo do texto; um desconforto específico, provavelmente incomum no leitor que estivesse lendo Orgulho e Preconceito no século XIX. Mas o problema maior, a meu ver, não é exatamente com a literatura de A Vegetariana – afinal, Yeonghye é alguém do nosso tempo – e, sim, comigo, talvez com você, que não suportamos a imagem refletida no espelho.

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