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Dalton Trevisan é figura emblemática para o imaginário da cidade de Curitiba, onde nasceu e viveu até os 99 anos. Ele faleceu no último dia 9. Com obra dedicada a retratar o cotidiano local e, especialmente, as desventuras dos seus habitantes, o contista colocou a sua Curitiba no mapa da literatura brasileira e mundial.
Junto das narrativas, o próprio autor se tornou sinônimo da capital paranaense, numa associação favorecida pela parceira de longa data com Poty Lazarotto (que ilustrou as publicações de Dalton e painéis pela cidade) e pela predileção por retratar Curitiba de modo contínuo, em seus personagens e temas.
De estilo conciso e direto, Trevisan abordava temas mundanos sob o ponto de vista de personagens marginais e aqui a perspectiva controversa do autor não fica de lado. “Dalton trabalha com a drama humano e não tem compaixão com os personagens”, analisa Roberto Nicolato, escritor, doutor e mestre em literatura. Ao escrever sobre violência conjugal, prostituição, vício e outras mazelas sem o filtro de uma moralidade, o entendimento é de que a dimensão universal ganha corpo em Dalton.
“É importante conhecer a obra do Dalton para conhecer uma Curitiba invisível [...]. Ele não estava incorporado à Curitiba oficial e criticava as transformações de uma cidade que se perdeu, que se tornou mais cosmopolita e perdeu a medida”, complementa Nicolato.
A qualidade literária rendeu reconhecimento amplo ao contista, entre os quais o Prêmio Camões, principal da língua portuguesa, em 2012, pelo conjunto da obra. E então, por onde começar a ler Dalton Trevisan?
A Gazeta do Povo fez esta pergunta a quatro personalidades da cidade e chegou a uma biblioteca básica para conhecer a obra do vampiro. Na estante: “Mistérios de Curitiba”, “A polaquinha” e “O Vampiro de Curitiba”. Confira abaixo os detalhes sobre cada uma das indicações:
- Luiz Felipe Leprevost, escritor, diretor da Biblioteca Pública do Paraná
“Mistérios de Curitiba”. A primeira edição data de 1968. A que eu tenho é a quinta, de 1996, revista pelo autor. Dos 49 textos, a maioria é seiva, sumo da produção do mestre.
Entre eles, “Lamentações de Curitiba”, “O rio”, “Chuva”, “O ciclista”, “Senhor” (famosa oração pedindo que Deus o livrasse dos chatos), “Modinha” (elegia à cidade da Lapa), “Certidão” (escrito com técnica de escriturário), “Em busca de Curitiba perdida” (clássico dos clássicos, aqui Dalton escreve “Curitiba sem pinheiro ou céu azul, pelo que vosmecê é — província, cárcere, lar —, esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo”), “Retrato de Katie Mansfield”, entre outros.
O autor a todo momento equilibra o ordinário, o lírico e o trágico, como aparece nas “Lamentações" que abrem magistralmente o livro.
Aparece no conjunto uma variedade de técnicas que revelam o domínio do escritor — poema em prosa, escrita cartorial, missivas de desamor, monólogos, além dos contos com características narrativas, digamos, convencionais, tanto na terceira quanto na primeira pessoa.
Há a continuidade de uma espécie de mapeamento da cidade, é o caso de “O Rio” — “A Ponte Preta anuncia um rio que não corre em Curitiba” — e “Praça Tiradentes”.
E temos a capa feita pelo Poty com personagens e cenas sobrepostas. No miolo, os desenhos dialogam com cada um dos contos. A última ilustração é a do Dalton de costas segurando livros na mão esquerda e a direita cerrada atrás das costas.
Nestes “Mistérios” também as personagens recorrentes João e Maria que, para o bem ou para o mal, somos todos nós. É um ótimo livro por onde começar.
- José Carlos Fernandes, jornalista e professor universitário
“O Vampiro de Curitiba” é leitura obrigatória para quem quer se encontrar, e se perder, no universo de Dalton Trevisan. Em especial para quem mora na soturna capital paranaense e sabe que o intragável Nelsinho é a mais pura verdade. Existem aos milhares, da CIC ao Bacacheri. Mas acho que dá para arriscar outro percurso e começar pelo único romance do autor: “A polaquinha”. Motivos? A rodo.
A história da guria que mora na periferia, fica de conversa fiada com o motorista do ônibus e namora sem pudores um homem casado – e manco – tem tudo para cair nas patrulhas contemporâneas. A começar pelo título, pouco palatável para a comunidade eslava, reativa aos estigmas que lhe impuseram. E pela misoginia expressa do autor – Dalton, sabe-se, não era um santo.
São barreiras para gostar da trama novelesca, um recorte do cotidiano da protagonista, uma heroína sem muito caráter. Por outro lado, difícil não achar a moça familiar. A gente se apaixona. Ela é safa e dona de sua cabeça, uma versão trainee das piradas mulheres daltonianas, hábeis em espremer caco de vidro e jogar no feijão dos maridos adúlteros.
Na vida como ela é, a polaquinha e as outras estariam nas páginas policiais, um espaço inspirador para o cruel Dalton Trevisan. Por ironia, é daí que vem sua grandeza literária. Penso.
- Paulo Polzonoff, jornalista e colunista da Gazeta do Povo
Dalton Trevisan publicou cerca de 50 livros, mas eu acho que a obra se resume a um livro, que é “O Vampiro de Curitiba”. É um livro que engloba tudo. Tudo aquilo que é importante [na obra de Dalton Trevisan] está ali. E o meu problema com o Dalton, literariamente, é justamente esse: a visão de mundo dele é muito reduzida, é uma visão determinista.
Para ele, o ser humano é um ser danado, está predestinado àquele cotidiano pequeno, àquela mediocridade. Eu tendo a achar que as pessoas são muito mais complexas e ricas do que isso. Até por isso me afastei da obra.
Hoje não dá para dizer que eu admiro o Dalton pelo conteúdo dos seus livros. O que eu sempre admirei e continuarei admirando é o estilo, a economia das palavras. É difícil cultivar um estilo reconhecível de cara, mas acho que com o tempo essa busca pela economia foi pervertendo a obra. Se hoje em dia ainda há ali algum conteúdo espiritual, filosófico mesmo, eu realmente não sei.
- Miguel Sanches Neto, escritor e crítico literário
Acho que o livro que é uma porta de entrada para o Dalton é o romance, meio novela, único que ele escreveu, “A polaquinha”. É uma história extremamente ágil, com pequenos capítulos, como se fossem pequenos contos que se organizam em torno da trajetória de uma das figuras meio legendárias de Curitiba que é a prostituta polonesa, ou a polaquinha.
Ela é um contraponto a figura do Nelsinho, que é o vampiro, o deflorador, que é o conquistador curitibano. Ela é esse contraponto e essa figura de uma mulher que narra a sua história e que reumaniza a figura da prostituta.