Alguns diretores têm uma atração especial por filmar romances considerados infilmáveis.
Foi assim com Jack Clayton e “A Última Volta do Parafuso”, de Henry James. Escrita em 1898, no auge do simbolismo, a obra traz sutilezas de atmosfera e assombrações que podem ser reais ou estar na imaginação da governanta da casa, enquanto as duas crianças de quem ela foi contratada para cuidar “tocam o terror” ao seu redor.
Por muito tempo o livro foi tido como impossível de adaptar – o que foi desmentido por óperas, encenações teatrais e até no cinema, pelo roteiro de Truman Capote e William Archibald, que transportaram o suspense para o rostinho de Deborah Kerr em “Os Inocentes”, de 1961.
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Até mesmo o “Ulysses” de James Joyce, povoado de neologismos, ganhou pelo menos duas adaptações no cinema, consideradas “divertidas ilustrações” por um dos tradutores da obra para o português, Caetano W. Galindo. “Não chegam a ser uma ‘versão’ do livro como no caso das melhores adaptações, por exemplo, ‘Os Vivos e os Mortos’, baseado em conto de Joyce”, diz Galindo.
Outro exemplo de catatau considerado inadaptável é “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”, em que o pregador anglicano Laurence Sterne destila um humor que perpassa as esferas doméstica e social de sua época. O protagonista é obcecado em deixar sua vida registrada, mas sofre de tamanha prolixidade que não consegue explicar nada.
A obra saiu em nove volumes a partir de 1759. Veja bem a data: é antes da Revolução Francesa, e o autor usa mecanismos de escrita que anunciam o modernismo do século 20. Por exemplo, mistura gêneros, incluindo em meio à ficção sermões religiosos, ensaios literários e documentos legais. Também elimina todo o capítulo 4, alegando que o resultado ficara tão bom que, ao compará-lo ao restante da obra, o leitor acharia os demais ruins. A brincadeira com a forma do livro também era inovadora.
Filme dentro do filme
Nada melhor, portanto, que a obra fosse homenageada com uma adaptação metalinguística: o filme “Tristram Shandy – A Cock and Bull Story”, de 2005, que brinca com o ato de adaptar.
A direção é do britânico Michael Winterbottom (interpretado no filme por Jeremy Northam), e a sinopse seria “uma tentativa de filmar o romance de Sterne”.
A comicidade é ampliada pela dupla Steve Coogan (que faz Tristram, o pai Walter e ele próprio) e Rob Brydon (o tio de Tristram, capitão Toby Shandy, e ele próprio). Quase como se fosse um falso documentário, o filme nos faz acreditar que estamos nos bastidores das intensas filmagens de um filme que pretende adaptar o romance “Tristram Shandy”. As cenas, porém, são entrecortadas, passando das filmagens, com roupas de época, para o relacionamento dos atores com a equipe, nos dias de hoje.
Livro
Laurence Sterne. Trad. José Paulo Paes. Companhia das Letras, 632 pp., R$ 72. Disponível somente em sebos.
Filme
Direção de Michael Winterbottom.Disponível na Netflix.
De época, vemos muito pouco, com destaque para a chegada do médico que trará Tristram à luz, mas que insiste em usar fórceps, tecnologia avançada na época. Os testes com melões e a mão do pai da criança, porém, revelam que o aparelho pode esmagar o crânio do bebê.
Percebemos durante as filmagens que não há uma firme convicção em relação ao roteiro, e a confusão que habita as páginas do romance transborda para as filmagens.
Por exemplo, os patrocinadores acreditam que uma cena de batalha ajudará a vender o filme. Já o diretor tem dúvidas, e questiona a inexatidão do figurino dos soldados, que erra por 50 anos. Nesse ponto, a figurinista começa a chorar.
Outra exigência que se faz da moça tem relação com o ego dos atores – o ego de Coogan, aliás, pode ser considerado o protagonista do filme, com seu estilo canastrão e tímido ao mesmo tempo, detestável e amado pelos fãs. Ele insiste para que o salto de seu sapato seja aumentado, para que ele fique mais alto que seu coadjuvante – Brydon, que defende ser seu personagem tão importante quanto o de Coogan.
Outra divergência que entra em cena diz respeito à necessidade ou não de se contratar uma atriz famosa para figurar no longa-metragem.
Com esses e outros conflitos, o filme, que supostamente se passaria no século 18, para nós acaba sendo uma discussão sobre como adaptar uma obra literária.
Entram aqui as diversas nuances do discurso que exige das adaptações fidelidade à obra literária – um conceito subjetivo, já que cada leitor recebe o romance de um jeito.
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