Nada pior para um músico do que se tornar proselitista político. E pouco importa sobre o que ou para quem milita. A consequência inevitável é distanciar parte – por vezes, considerável – do seu público e se impor uma limitação criativa que o aliena da própria vocação. E, se um dia ousar passear por outras paragens, permitindo-se transcender ou descansar de seu ativismo, acaba por espantar e distanciar o público que lhe ficou fiel.
Um excelente exemplo disso é Caetano Veloso. Em sua turnê atual, ao lado de Maria Bethânia, incluiu a canção evangélica Deus Cuida de Mim, do pastor Kleber Lucas. Segundo o próprio Caetano disse em entrevista: “Essa é a única canção que não recebe aplausos entusiasmados. E isso não me surpreende. Para a maioria do público que vai ver Bethânia comigo, o interesse pelo assunto ‘igrejas evangélicas’ não é algo esperado nem desejado. Mas eu sei que pode criar conversas que não costumam se dar”.
“Não é algo esperado nem desejado”. Mas não foi sempre assim. Na carreira de Caetano, músicas com temática religiosa não são incomuns, independentemente de suas crenças pessoais. Já em seu primeiro disco como artista solo, de 1967, temos Ave-Maria, cuja letra nada mais é do que a oração a Nossa Senhora, em latim, retrabalhada e embalada em ritmo abrasileirado. No disco de 1975, há Escapulário, samba que trabalha criativamente uma poesia de Oswald de Andrade com a oração do Pai Nosso: “No pão de açúcar/ De cada dia/ Dai-nos, Senhor/ A poesia de cada dia”.
Na década de 80, gravou Peço a Deus, em dueto com Marçal (que não é o Pablo, informe-se). A mãe de Jesus retornou em 1999, no ótimo disco em homenagem a Fellini, em outra música chamada Ave Maria, cuja letra diz: “Quando o sino saudoso murmura badaladas da Ave Maria!/ Sino que tange com mágoa dorida, recordando o tempo da aurora da vida/ Dai ao coração paz e harmonia, na prece da Ave Maria!”. Ainda, em 2002, há Graça Divina, presente no disco gravado com Jorge Mautner, onde canta: “A graça que vem de cima e vem de graça/ Porque é a graça e é divina”.
Portanto, cantar agora “Eu preciso aprender mais de Deus” não deveria surpreender nem escandalizar. Se assim tem ocorrido é por culpa do próprio Caetano, que se deixou engolir pela militância política, a ponto do jornalista Glenn Greenwald ter dito recentemente em um podcast que o apartamento de Caetano se tornou um bunker político de tal importância que: “Não há como ganhar uma eleição no Rio sem ir ao local”.
Pois foi justamente neste apartamento que Caetano escutou pela primeira vez Deus Cuida de Mim, tocada no violão pelo pastor compositor. E por que ele estava lá? Porque era a época da última campanha eleitoral para a presidência da República e ambos participavam do time de Lula, como disse o pastor em entrevista à revista Veja: “Eu e o Caetano nos aproximamos durante a campanha do presidente Lula. Nos aconchegamos de forma muito leve. Certo dia, estávamos na casa dele, quando peguei o violão durante uma madrugada e comecei a tocar Deus Cuida de Mim. Ele ficou curioso e começou a aprender a tocá-la e cantá-la”.
Pontes imaginárias
Em várias entrevistas, embora Caetano destaque a dimensão espiritual na decisão de regravar a música em dueto com o pastor, incluindo-a em seus shows, não tem como negar a intenção política disso, reconhecendo a magnitude do fenômeno evangélico e, portanto, a necessidade do seu grupo ideológico de construir pontes com essa fatia expressiva do eleitorado. Daí ter dito, na citação acima, que gostaria de “criar conversas que não costumam se dar”.
Estaria conseguindo? Com os evangélicos, até agora, nada. Primeiro, porque a música já era famosa entre eles e mais uma regravação é apenas isso: mais uma regravação. Segundo, porque os evangélicos que Caetano quer catequizar não são aqueles pastoreados por Kleber Lucas, cuja posição política é de esquerda e destoa da imensa maioria dos demais evangélicos. Ou seja, se a ideia foi a de construir um “cavalo de Troia” para entrar neste meio, Caetano escolheu o pastor errado. Seguirá conversando apenas com quem já pensa como ele, ao menos em política.
Por outro lado, é interessante acompanhar os efeitos da gravação fora do meio evangélico, com o público que só conheceu a música por causa de Caetano. Um exemplo significativo: há poucas semanas, Kleber Lucas esteve cantando sua música no programa de Marcos Mion, na TV Globo. Sabe quando algo assim aconteceria sem que Caetano tivesse gravado sua música? Pois é, nunca. Ou seja, o “cavalo de Troia”, no fim das contas, está sendo Caetano Veloso, que ao tentar se achegar aos evangélicos, trouxe-os mais para dentro do meio progressista do que o progressismo para eles.
Não deixa de ser engraçado. Eis aí algo que todos precisamos aprender mais de Deus mesmo: Ele tem senso de humor. Amém.
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