Ellar Coltrane e Ethan Hawke, que vivem filho e pai em “Boyhood – da Infância à Juventude”| Foto: Divulgação Universal
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Há exatamente dez anos, em agosto de 2014, as salas de cinema começavam a receber um filme de 2h45 que se tornaria um marco do cinema alternativo americano e mundial. Nenhum outro longa colecionou tantos elogios e notas altas em agregadores de críticas desde então, tampouco surgiu algum projeto rodado de maneira tão peculiar e autêntica. Boyhood levou 12 anos para ser filmado e capturou a essência da experiência de ser jovem neste milênio. A Netflix acaba de readicioná-lo em seu catálogo.

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No Brasil, o título ganhou a adição “da Infância à Juventude”, reforçando a ideia do diretor, roteirista e produtor do trabalho, Richard Linklater. Antes de Boyhood, o cineasta já tinha se destacado por ser um grande pensador da questão do tempo nos relacionamentos. É dele a cultuada trilogia Antes do Amanhecer (1995), Antes do Pôr-do-Sol (2004), e Antes da Meia-Noite (2013), em que um casal formado pelos atores Ethan Hawke e Julie Delpy se conhece, se apaixona, se casa e se separa em obras espaçadas por nove anos. Em Boyhood, Linklater volta a filmar com Hawke, mas a estrela é Ellar Coltrane, que vive Mason, um garoto de 6 anos que o espectador vê desabrochar até chegar aos 18.

Mesmo com a proposta singular de acompanhar a vida de um jovem e dos personagens ao redor ao longo de 12 anos, o filme abocanhou apenas um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante para Patricia Arquette, que vive a mãe de Mason, Olivia. Em outras premiações, os júris foram bem mais generosos. Mas nenhum reconhecimento é maior do que o do público, que consagrou a película com uma boa bilheteria, fazendo um épico de quase três horas que custou 4 milhões de dólares devolver 53 milhões só nas salas americanas.

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O olhar de Mason

Boyhood segue vibrante porque conta uma história cara a qualquer indivíduo: a evolução de um menino em todas as áreas até sua chegada à universidade. Independentemente de classe social, formação familiar, gênero, raça, credo, tempo ou logradouro, todo mundo passa por sensações e mutações experimentadas por Mason. No caso, o garoto cresce no Texas, sempre ao lado da mãe e da irmã (Samantha, papel de Lorelei Linklater, primogênita do diretor na vida real), e com convívio esporádico – porém muito edificante – com o pai, interpretado pelo carismático Hawke.

No início, Mason ainda sonha com a volta do casamento. Depois, aprende a lidar com a incompatibilidade do ex-casal e tem seu olhar focalizado sempre que mãe ou pai se interessam por alguém novo. Essas expressões do garoto dizem muito. Ele não apenas faz um julgamento momentâneo, como parece colocar em perspectiva o seu futuro convivendo com esses seres diferentes no seio familiar. Aliás, poucas obras conseguiram captar tão bem os aprendizados da vida cotidiana, mostrar o esforço de uma mãe para dar vida digna aos filhos (e depois o desespero com o ninho vazio), a contribuição de parentes e chegados em situações críticas ou corriqueiras e etc.

O desenvolvimento do moleque é retratado por meio dessas relações fraternas e também pelas amizades feitas e desfeitas, pelos flertes e bullyings escolares, pelos conselhos dos professores, pelas viagens emancipadoras... Assim, Mason vai se tornando um grande ser humano, tudo ao seu tempo. Linklater reunia o elenco anualmente para definir como seriam as próximas gravações e sempre levava em conta as últimas descobertas dos atores para, talvez, integrá-las ao roteiro, que até por conta disso foi se modificando ao longo dos 12 anos. Uma curiosidade desse processo tão incomum é que, em dado momento, o diretor chamou Hawke de lado e mandou: “se eu morrer no meio do caminho, é você quem vai finalizar o projeto”.

Por sorte, todos sobreviveram e seguem suas trajetórias como estrelas de Hollywood, em maior ou menor escala. Existe a promessa de uma grande reedição do filme, com cenas extras e ideias que ficaram de fora – num longa rodado durante tanto tempo, o material deve ser farto. Enquanto isso não nasce, Linklater segue ativo lançando filmes convencionais e, paralelamente, trabalhando em misteriosos projetos similares, que captam transformações por anos a fio. Pelo êxito e pela sensibilidade de Boyhood (expressa até mesmo na escolha da trilha sonora, com músicas de Wilco, Vampire Weekend e Phoenix), só resta ao fã de cinema torcer para que o diretor, hoje com 64 anos, conclua tudo e cause novos arrebatamentos estéticos como o de uma década atrás.

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