Policiais em Ferguson, no estado de Missouri, se preparam para invadir uma residência| Foto: /Divulgação

Não é nenhum segredo que os departamentos policiais dos EUA já se transformaram em minimilícias, munidas de todos os brinquedinhos mais destrutivos que o dinheiro do contribuinte pode pagar. O documentário “Do Not Resist” [exibido semana passada no Festival da Bienal Internacional de Curitiba] examina o fenômeno através de vinhetas – muitas das quais são inesperadamente sutis – que parecem não ter muita relação entre si.

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Por exemplo: Depois de sermos transportados para Ferguson, Missouri, onde policiais em trajes antimotim lançam gás lacrimogêneo contra uma manifestação pacífica em resposta à morte de Michael Brown, o filme captura as cenas de reuniões na comunidade, de seminários de treinamento policial e imagens de vastos estacionamentos cheios, até o horizonte, de veículos blindados.

Policiais em Richland County, na Carolina do Sul, quebram as janelas de uma casa em busca de maconha Divulgação  
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Seria difícil escolher quais dessas cenas é a mais marcante, mas uma forte candidata é quando uma equipe da SWAT em Richland County, na Carolina do Sul, cerca uma casa para executar um mandato de busca e apreensão. Eles causam o máximo de destruição que podem, quebrando as janelas na hora de entrar – como um deles explica, essa é uma “tática de distração” –, depois algemam todo mundo que encontram. Na revista que se segue, é encontrada uma pequena quantidade de maconha. O jovem negro que é acusado de posse de drogas é um universitário que trabalha com paisagismo. Ele pede a um policial, que lhe parece gentil, para que entregue os US$876 que ele tem no bolso ao seu chefe. “Fala para ele comprar a motopoda da marca Stihl”, ele diz ao policial, que, sem a menor cerimônia, decide, em vez disso, embolsar o dinheiro.

Equipe da SWAT durante treinamento em Orlando, na Flórida Divulgação  

Um retrato perturbador emerge aí, que fica ainda mais interessante quando consideramos que seu diretor, Craig Atkinson (o cinegrafista de “Detropia”), marinheiro de primeira viagem no mundo dos documentários, é filho de policial. Seu pai serviu numa equipe da SWAT por mais de uma década. Foi para compreender como e por que o trabalho policial mudou tanto desde que começou a “guerra contra o terror” que Atkinson decidiu fazer esse filme .

É incrível como o diretor conseguiu acesso a oficiais de polícia, oficiais do governo e contratantes independentes, e, como resultado disso, são várias as explicações que nos são dadas. Num certo ponto, a câmera nos leva a um seminário com Dave Grossman, um treinador experiente de aplicação da lei e coronel tenente aposentado do exército, que ensina aos recrutas que “A violência é a sua ferramenta... Vocês são homens e mulheres da violência”.

Ele passa a impressão de ser uma versão assustadora e sanguinária de um palestrante motivacional, explicando coisas como, por exemplo, que os recrutas terão o melhor sexo que já tiveram em meses depois de passarem por uma experiência de quase morte. Seus livros são leitura obrigatória para a Academia do FBI e muitas outras academias de polícia, como nos informa o filme.

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Veículo blindado anda nas ruas de Juneau County, cidadezinha de 26 mil habitantes no estado de Wisconsin Divulgação  

Mesmo sem a orientação de um narrador ou um único arco narrativo que seja, fica cada vez mais claro que a guerra contra o terror acabou sem querer gerando uma outra guerra: entre os policiais treinados como soldados para o combate e as pessoas que era seu dever proteger. É claro que nem todo policial é sanguinário, mas a atitude das orientações dadas nos departamentos que vemos no filme não deixa o menor espaço para a compaixão.

O documentário parece expansivo até demais às vezes, sobretudo quando trata do futuro da tecnologia. As revelações são chocantes: Um homem descreve drones programados para decidir quem vive e quem morre, ou os dados que podem prever as chances de conduta ilegal de uma criança que ainda não nasceu. Mas essas histórias não parecem se encaixar com o que vimos antes.

Policiais retornam à base depois de enfrentarem uma manifestação Divulgação  

Ainda assim, o filme, ganhador do prêmio de melhor documentário no festival de Tribeca, chama a nossa atenção para uma tendência que vem levando a algumas mudanças sociais alarmantes. Em certo ponto, James B. Comey, diretor do FBI, dá um discurso no qual responde às críticas contra os chamados “policiais guerreiros”. “Existem monstros de verdade”, é a justificativa que ele dá para defender a militarização das forças policiais.

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E eles existem mesmo: disso não há dúvidas. Como bem nos mostra “Do Not Resist”, alguns deles até usam farda.