Estava ansioso e, confesso, temeroso por assistir ao filme ‘O Jardim das Aflições’, de Josias Teófilo. Conhecia a obra que o inspirara e guardava uma certa convicção de que qualquer pretensão de adaptá-la ao cinema, por mais erudição que se tivesse, seria um fracasso. Mas, graças a Deus, o documentário foi fiel ao filósofo e suas ideias, mantendo-se despretensioso, com um olhar simples e direto à vida cotidiana, aos sentimentos e às ideias de Olavo de Carvalho.
Logo no início, enquanto Olavo comenta sobre a gênese de seu livro, o filme escancara símbolos tão contundentes que não acredito que tenham sido propositais. Quando o são é quase sempre de um prosaísmo grotesco. Eis que surge uma penteadeira, símbolo narcísico por excelência e tão próprio às ideologias subjetivistas, um dos alvos da crítica de Olavo de Carvalho. No entanto, o espelho também é um convite para o espectador olhar para si mesmo. Essa dubiedade do símbolo é prova maior de seu alcance e a dialética um método que Olavo domina com maestria. Esse olhar para si mesmo, como pedra angular da vida de um filósofo, está na base de toda a Tradição Espiritual e Olavo tem aqui também uma grande contribuição.
Sobre uma mesa muito simples, anuncia-se uma mesa muito maior, a do prestidigitador, onde encontramos os quatro elementos: o fogo, representado pelo cinzeiro, o ar representado por um bastão, a água representada pelo vaso e a terra representada por uma moeda. O mago está na própria narrativa.
O filme começa muito bem.
O livro, mesmo com rico vocabulário, com uma narrativa clássica e trazendo ideias de uma complexidade quase vertiginosa, pode ser compreendido por quem tem uma formação relativamente básica. E por isso também é uma obra prima. O filme o apresenta com uma narrativa sóbria, é entrevistado pelo Wagner Carelli, um dos raros editores cultos do país e deixa o filósofo muito à vontade em sua intimidade com as ideias, assim como com sua família. A estrutura musical do livro é contemplada pela escolha da Sinfonia de Jan Sibelius e a intimidade familiar, em meio ao jardim da Virgínia, pelo acordeon encantador de Vladislav Cojoru.
A transformação das delícias, propostas pelas ideologias ditas humanistas, em aflições é fartamente documentado no livro e o abandono do real é o alvo da crítica do filósofo. O filme nos convida a refletir sobre o papel da filosofia, não apenas documentando um discurso, mas nos convidando a uma certa intimidade com a simplicidade do autor. O filme não acompanha a trajetória da obra, como foi vivenciada pelo autor, ou seja, não nos leva à perturbação do filósofo ao se deparar com o famigerado seminário de ética promovido pela esquerda brasileira em 1993. O filme, ao contrário do desconforto criativo sofrido pelo Olavo, nos leva a um homem que já conseguiu escapar desse canto de sereias e, qual Ulisses, nos conduz de volta para casa, ansioso por sua amada.
“Contra a tirania do coletivo”
O filme começa em Ítaca, no caso, o Estado da Virgínia, nos EUA, uma espécie de ilha natal, cercado por um cotidiano cuja simplicidade nenhuma delícia desse mundo pode suprir, e termina com uma reflexão sobre a morte, com a mesma serenidade com que fala sobre um amigo.
A abertura do capítulo ‘Contra a tirania do coletivo’, feita com um tiro contra uma caça num bosque é muito prosaica e confesso que pareceu desnecessária. Essa tirania do coletivo não é nada natural, ainda que seja uma trágica constante na história. Exige mais que a mira de um rifle para se defender. Mas o fato do porte de armas no Brasil ser demonizado, e ter se transformado em símbolo de um povo que obedece passivamente ao seu algoz, não poderia ser mais contundente.
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O Jardim das Aflições não é apenas uma reflexão sobre as ideias que nos aprisionam, mas também sobre nós mesmos, agentes da própria libertação.
O Jardim se torna sua casa e antídoto contra a opressão da organização moderna. É também um exercício proposto em seu curso de filosofia, como uma prática fundamental nas artes liberais, ou seja, o contato com o universo circundante, em sua forma mais natural possível é a experiência do real, do primal, base de toda e qualquer elucubração do pensamento.
Engodo da modernidade
A escolha dos temas no filme foi muito feliz. A reflexão sobre a substância do Direito, por exemplo, tem não apenas uma importância filosófica, mas é de uma urgência política fundamental para a encruzilhada civilizacional por que passamos. Falar que hoje temos mais direitos implica em contrapartida num aumento dos deveres, deveres esses que os amantes das delícias não aceitam. Essa contradição está no cerne do status quo, e é uma constante na crítica filosófica de Olavo de Carvalho.
Viver para o próximo é a essência do cristianismo e a filosofia de Olavo de Carvalho está sempre apontando para esse centro irremediável, sem o que esse jardim se transformará em aflição. A filosofia de Olavo de Carvalho é justamente essa denúncia contra o engodo de uma modernidade que propaga liberdades e direitos individuais e coletivos, mas, na verdade, diminui, em maior proporção, esse mesmo indivíduo. O Estado moderno cresce muito mais que os indivíduos por ele protegidos e uma uma nova classe psicótica, acredita estar defendendo o povo quando tão somente o está traindo.
Não é à toa que os idealistas odeiam tanto a realidade e o povo, pois estes estão sempre a confrontar seus ideais idílicos e tresloucados. Por essa razão o genocídio é sempre a consequência inevitável desses ideais coletivistas e o Jardim das Delícias se torna o Jardim das Aflições, sempre.
Essa lógica sibilina é desvendada generosamente por Olavo de Carvalho nessa que, para mim, é sua grande obra, e o Josias acerta em fazer um filme inspirado por ela.
"Como tornar-se o que se é"
Enquanto Olavo esclarece suas teses, a câmera navega pela esplanada árida do centro de poder: Brasília. Esse monumento, desenhado por um arquiteto comunista, se torna o símbolo da decadência do poder no Brasil. É aqui onde o filme silencia.
No capítulo "Como tornar-se o que se é", Josias abre a cena com Roxane, mulher e amor do filósofo. A grandeza do servir volta em forma de mulher. É justamente do coração de uma mulher que surge a referência ao poeta Bruno Tolentino. Conheci Bruno Tolentino no Recife, recém chegado da Europa. Foi uma experiência encantatória ouvi-lo falar, declamar, contar ou inventar histórias, não importa. Se não fosse sua verve poética, tão sensível ao filósofo Olavo de Carvalho, o Jardim das Aflições possivelmente não teria sido publicado.
O Josias foi precioso por nos lembrar que é também graças à poesia que temos nossa maior obra política e filosófica. Aliás Olavo o declara desde o início da obra. O prefácio do Bruno ressalta a crítica do “mundo como ideia” e a câmera passeia pela biblioteca do Olavo como se estivéssemos visitando a história das ideias. É luminoso. Poesia e filosofia se encontram na história do Brasil e esse é um sinal de esperança mais real que a moeda.
Desde o prefácio o poeta denuncia uma obra grandiloquente, como uma sinfonia, tal como Sibelius, alias, anterior, seguindo uma perenidade. E nada mais anterior que a consciência do eu, o outro centro da hipérbole do sistema olaviano. O filme é assim, pleno de citações intelectuais e artísticas que se suportam mutuamente, não apenas para elucidar uma obra ou seu autor, mas para nos encantar e nos levar de volta a nós mesmos, a uma dignidade a um só tempo nacional e pessoal.
*Ronaldo Castro de Lima Júnior é bacharel em Relações Internacionais, escritor e ensaísta.