A história de Saroo Brierley, contada em seu livro de memórias “A Longa Estrada Para Casa”, que foi publicado em 2013 e agora adaptado para o cinema no novo filme “Lion – Uma Jornada Para Casa”, é difícil de acreditar. Em 1986, tendo se perdido do seu irmão mais velho – depois de eles terem percorrido vários quilômetros, saindo da pequena cidade indiana onde moravam atrás de trocados –, ele, com 5 anos à época, entrou em pânico e pulou num vagão de trem vazio procurando seu irmão adolescente.
Quando o trem começou a andar – e não parou por 32 horas –, a criança foi levada, numa locomotiva fechada, a Calcutá, a quase 1600 quilômetros de onde saiu, onde conseguiu sobreviver nas ruas por três semanas antes de ser encontrada pelas autoridades.
Ele não sabia o nome de sua mãe, nem o próprio sobrenome. Ele falada hindi, mas era incapaz de se comunicar com a multidão de policiais que tentaram ajudá-lo, mas que falavam outro idioma, bengali. E o nome do lugar onde ele insistia em dizer-lhes que era a sua casa – Ganesh Talai, um bairro na vila de Khandwa – era irreconhecível. Uma hora o menino foi colocado para adoção e levado por um casal australiano, Sue e John Brierley, da Tasmânia, onde ele foi criado.
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E essa não é sequer a parte inacreditável ainda.
Quando ele tinha os seus 20 e poucos anos, após ficar sabendo da existência do programa de mapeamento virtual 3D do Google Earth, Brierley começou a procurar online por imagens que pudessem corresponder às suas lembranças fragmentadas da cidade onde viu seu irmão pela última vez: uma torre de caixa d’água perto de um viaduto na estrada, visível da plataforma da estação; um desfiladeiro próximo; e um lugar com um nome que começava com “B”. Supondo que ele deveria ter ficado umas 24 horas no trem, e multiplicando esse número pela velocidade dos trens de passageiros nos anos 80 na Índia, Brierley conseguiu estreitar a sua busca para um raio específico em torno de Calcutá, eliminando o extremo norte do país – porque ele nunca tinha visto neve quando criança – e o extremo sul, onde hindi não é um idioma tão falado. Após vários anos de pesquisa minuciosa, trilho por trilho, Brierley chegou ao que parecia ser um resultado exato: Bhuranpur, e a cidade de Khandwa, a uma curta distância. Em 2012, Brierley viajou para lá e conseguiu encontrar sua mãe, que nunca perdeu a esperança.
E nem ele.
O ator Dev Patel incorporou Saroo adulto em “Lion”, numa performance apaixonada, mas pé-no-chão, que vem gerando rumores em torno da possibilidade de prêmios. Patel nos contou recentemente, por telefone, como foi capturar o que ele chamou de a “motivação inabalável” de Brierley, além do feito extraordinário de memória que isso acarretou.
“Eu acho que Saroo devia ser estudado cientificamente”, diz Patel, notando que, para muitos que sofreram esse tipo de trauma de infância, as lembranças se tornam mais difíceis e não mais fáceis de acessar.
Numa entrevista por telefone, o verdadeiro Saroo Brierley, que havia chegado no estado da Virgínia para o Festival de Cinema de Middleburg, em outubro, no qual “Lion” foi o filme da noite de abertura, nos pareceu surpreendentemente blasé a respeito de sua capacidade extraordinária de memória, admitindo apenas, no que foi um exemplo supremo de eufemismo, que “foi preciso pensar um tantinho para fazer as memórias voltarem”.
Ao ouvirmos Brierley, com seus 35 anos, contar sua história, não é difícil conceber imagens do lugar de onde ele veio – suas primeiras memórias, diz ele, datam de quando tinha 3 anos de idade – , porque essas imagens nunca o abandonaram.
“Eu digo para mim mesmo, desde a infância, ‘Nunca vou esquecer o lugar em que nasci’”, ele conta. “Esta é a minha identidade. Se eu perco isso, eu perco tudo”.
Ele reconhece, é claro, que, com o tempo, alguns detalhes se perderam nas brumas da memória. Mas o que ele chama de “o principal do lugar” – detalhes vívidos da arquitetura e paisagem – continuaram com ele.
Labrador humano
Na medida em que Brierley transmite a impressão de uma pessoa assombrosamente tranquila, centrada e autoconfiante, dado tudo pelo qual ele passou, Patel foi uma escolha estranha de elenco, e ele mesmo admite isso. O ator, mais conhecido por comédias pastelão, como ele mesmo reconhece, como “O Exótico Hotel Marigold” e sua continuação, se descreve como uma figura naturalmente “hiperativa, que não para quieto”.
“Eu sou uma criatura grande e ruidosa, que nem um labrador”, ele diz. Apesar de ter interpretado já personagens que passavam muito tempo na frente de monitores de computador – notavelmente no thriller de ficção científica “Chappie” – , interpretar alguém com o “autocontrole intenso” de Brierley não lhe era uma aptidão natural.
Patel também engordou uns 9 quilos, deixou seu cabelo crescer, muito além do estilo rente que ele usou em “O Homem que Viu o Infinito”, e aprendeu a falar com sotaque australiano. “Quando peguei o roteiro”, Patel lembra, “eu chamei o meu agente e disse, ‘Não me mande mais nada durante os próximos oito meses. Não quero ler mais nada. Quero fazer jus a esta oportunidade e empenhar minha alma completamente nela’”.
Apesar de o ator de 26 anos considerar o papel como “uma das maiores transformações pelas quais passei pela telona”, ele também diz que o papel de Saroo – e sua jornada para recriar seus laços com suas próprias origens – foi “um dos personagens mais parecidos comigo que eu já interpretei”. Como filho de pais indianos crescendo em Londres, Patel diz que ele “fazia de tudo para se encaixar, o que às vezes significava desprezar as suas origens. Quando fui para a Índia pela primeira vez como um adulto consciente, para fazer ‘Quem quer ser um milionário?’, eu me apaixonei pelo lugar. Eu me sentia mais completo, como um ser humano”.
Flashback
Brierley afirma que consegue se enxergar nessa caracterização. Uma cena no filme mostra Saroo tendo um flashback, causado por um prato de jalebi, uma guloseima de massa frita da sua infância que Brierley diz que sua família raramente tinha dinheiro para poder comer. Apesar desse momento proustiano ter acontecido de verdade, Brierley conta que havia com frequência muitos outros tais flashbacks – que não aparecem no filme – causados por coisas tão simples quanto ver uma mãe e filho nas ruas da Tasmânia. Ele fala de recriar os laços com sua mãe como uma forma de “curar seus sonhos”, mas faz pouco causo da sugestão de que uma forma de terapia mais tradicional, ou menos obsessiva, pelo menos, poderia tê-lo ajudado.
“Nunca pensei que eu precisasse desse tipo de coisa”, ele diz. “Coisas acontecem com todo mundo. Só por acaso aconteceu comigo uma coisa que nunca deveria acontecer com criança nenhuma”.
Nascido e criado em Washington, D.C., Michael O’Sullivan vem trabalhando desde 1993 no The Washington Post, onde faz cobertura de matérias sobre arte, cinema e outras formas de cultura popular e impopular.