Quando certa manhã Yeonghye acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseada numa árvore. Yeonghye não é Gregor Samsa e a escritora sul-coreana Han Kang está longe de ser Kafka, mas não há como não lembrar de A metamorfose na leitura de A vegetariana, obra que rendeu a Kang o Man Booker International Prize e uma consagração merecida mundo afora.
Tirando os sonhos intranquilos e a transformação de Yeonghye em uma árvore, A vegetariana é uma ficção bastante original, que explora com muita qualidade o desmantelamento inesperado de uma família sul-coreana comum. Jeong, o marido da protagonista, começa a narrativa descrevendo a mudança de comportamento da esposa que, de uma hora para outra, para de comer carne e passa a viver de forma desleixada. Ela não usa mais sutiã e gosta de expor os seios, não penteia os cabelos, a vida matrimonial desanda. Depois de flagrar a mulher numa madrugada botando no lixo todas as carnes da geladeira, a única resposta que Jeong obtém dela é: “Eu tive um sonho”.
O que já era uma vida bastante ordinária vira um pesadelo real em que Yeonghye ignora a casa e o marido, concentrando-se em comer seus vegetais. Mas ele só começa a perceber o quanto isso vai transformar sua vida após um jantar importante com o patrão, no qual a esposa mantém o comportamento absurdo e quase atrapalha sua carreira. Depois, quando a família se reúne numa tentativa de convencê-la a voltar à normalidade, o encontro acaba em violência e um quase suicídio, numa cena marcante em que todos, inclusive os pais, ficam contra Yeonghye.
A chave para a metamorfose da protagonista aparece na segunda parte do romance, que tem o cunhado como catalisador das ações.
Hyung é um artista fracassado, praticamente sustentado pela irmã de Yeonghye. Ele, num instinto puramente artístico, resolve usar Yeonghye como modelo num projeto de pintura do corpo humano. Ela vai aceitando tudo, transformando-se numa instalação artística a ser filmada em cenas eróticas.
O que Hyung não imaginava é que ter o corpo pintado com desenhos em formas de plantas e flores despertaria ainda mais em Yeonghye o que ela vinha sonhando. A aversão à carne e a apreciação do vegetarianismo dominam ao extremo a mente da protagonista quando ela vê o próprio corpo transformado em um vaso ambulante. Aqui, na metade do livro, Han Kang já encanta com um texto impactante e segurança na narrativa de temas fortes, como a violência da primeira parte e o lirismo erótico da segunda.
Sensualidade e abandono
A autora traz cenas sensuais de forma inovadora, em que a personagem Yeonghye não resiste e cede ao desejo e ao erotismo proposto pelo projeto artístico do cunhado. A habilidade de Han Kang na criação e na narração da parte sensual do livro é surpreendente. O erotismo que envolve os personagens é muito verossímil, a tensão perdura por várias páginas, as cenas têm uma beleza perturbadora.
A entrega de Yeonghye favorece a proposta artística do cunhado, que finalmente liberta a inspiração e executa seu melhor projeto, saindo da rotina comum que havia permeado sua trajetória na arte. Ao mesmo tempo, ao ter seu corpo transformado em cores e traços do mundo vegetal, Yeonghye enxerga nisso a confirmação de sua opção pelo vegetarianismo, acreditando ainda mais nas mensagens de seus sonhos.
Assim como foi abandonada pelo marido na primeira parte, na segunda é o cunhado que sai de cena após realizar-se com o projeto artístico. Resta a irmã de Yeonghye, a comerciante Inhye, assumir o protagonismo na parte mais real e dolorosa da história. Ela também se separa do marido, que só se interessa pela arte e mais nada, além de ter traído a mulher com a cunhada.
Yeonghye é internada em hospitais para sair do mundo dos sonhos. A nossa Gregor Samsa de olhos puxados pensa que é uma árvore e tenta se comportar como tal. Chega a ficar de ponta cabeça imaginando que seu corpo é o tronco e suas pernas, galhos prestes a florescer.
Inhye revela-se a única pessoa centrada na história. Trabalha, cria o filho e agora só há ela para cuidar da irmã, que nunca desperta da metamorfose que abalou a família. Yeonghye não virou um inseto monstruoso, mas pensa que é uma árvore que nada precisa fazer além de receber água.
Han Kang fez um livro ousado. Reuniu violência, erotismo e loucura e manteve o controle da narrativa nas 171 páginas da obra. Não à toa recebeu elogios até de Ian McEwan, que chamou A vegetariana de “um pequeno romance sobre sexualidade e loucura que merece seu grande sucesso”.
O livro causa também surpresa por vir de produção tão afastada do grande cenário da literatura mundial, caso da Coreia do Sul. A Ásia já tem um espaço de destaque nas livrarias pelo mundo com a vasta obra contemporânea japonesa e alguns bons livros de autores chineses.
Com a chancela do Man Booker Prize, Han Kang coloca a Coreia do Sul com força nas prateleiras literárias. Mais que isso, A vegetariana sinaliza um talento raro de uma autora cuja carreira tem tudo para entrar em metamorfose, mas num sonho tranquilo.
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