É verdade que os aforismos, discursos e pequenos ensaios reunidos em Sobre os escritores revelam menos a respeito de quem o búlgaro Elias Canetti escreve do que sobre ele mesmo. Mas essa minha observação, que tenta compreender em poucas palavras a coletânea por inteiro, não deixa de ser um puro clichê argumentativo que, sem dúvidas, envergonharia este Nobel de 1981. Primeiro porque, logo no princípio, já se vê que os comentários dele estão cravejados de imagens renovadas e surpreendentes, análises que se aproximam da elaboração poética e se afastam de uma tacanha crítica literária. Depois porque a preocupação não é classificar, não quer também estabelecer uma verdade definitiva e científica; seu olhar é absolutamente pessoal e essencialmente amoroso, mesmo quando se trata daqueles cujos trabalhos despreza. O que move Canetti em relação a esses autores é a própria experiência de leitura e a sensibilidade que nasceu a partir dela. Por isso um texto derivado desse livro, que foi organizado após a morte do autor, lançado no Brasil em 2009 e relançado agora, poderia fazer um tanto mais jus ao original se também se pretendesse à fragmentação das breves anotações e das glosas. É o que farei.
Fragmentos
Eles não ousarão — é bastante eloquente que Canetti destaque essa frase de uma peça do alemão Georg Büchner em que se mostra a queda do revolucionário francês Danton. O excerto pode jogar luz nos percalços por que passaram Büchner e Canetti, cada um em seu século, cada um em sua vida. Ambos foram acossados por regimes de opressão e horror — Büchner morreu na Suíça, exilado, perseguido por sua militância camponesa; o judeu sefardita Canetti fugiu da Áustria após a anexação à Alemanha nazista, em 1938, escondendo-se na Inglaterra. A crença de que a barbárie não vai se abater pode ser fatal; a ideia de que os outros jamais estariam dispostos a perder a decência e a humanidade é um dos motivos que levam, na peça, Danton à guilhotina e o que fez também o século 20 cair no holocausto. Não é à toa que Büchner esteja entre aqueles que dizem muito para Canetti. A novela Lenz elabora em especial o tema da fuga, e Woyzeck repensa o “diminuto”, o humilhado.
O que interessa a Bacon é o poder em todas as suas formas. (…) Não lhe bastam apenas as coroas, por mais esplêndido que seja seu brilho. Ele sabe como se pode governar secretamente — Canetti não perde de vista o poder no que os outros refletiram, porque o tema foi fonte de suas inquietações durante décadas. Nesse trecho, identifica-o em Francis Bacon, mas também o extrai de Thomas Hobbes, quando afirma sobre o inglês: “Ele é o único pensador que conheço que não esconde o poder, seu peso, sua posição central no comportamento humano. Ele tampouco o glorifica, simplesmente o deixa estar”. Outro que orbita o tema é o conservador Joseph De Maistre, de cuja pena saíram coisas “terríveis. Mas ele as disse porque existem no mundo”. O terror, o poder, sua inevitabilidade catastrófica e cruel, características que o pensamento alheio aponta na vida, incrementam a perspectiva de Canetti, um homem que lê o passado para enxergar ainda mais o presente. Por isso a reflexão dele vive permanentemente na história (“o poeta é o cão do seu tempo”). Resulta daí Massa e poder(1960), uma apreciação crítica sobre o fascismo e o culto à personalidade do líder, um tratado de filosofia, um trabalho definitivo para a escolha dele ao Nobel.
Imolar seus amigos e deixá-los ardendo sozinhos, coisa bem cruel e bem própria de um poeta — a citação deriva certamente do que há de mais austríaco em Canetti, que, apesar de ter nascido na Bulgária e morado na Suíça, na Alemanha, na Inglaterra, considera que sua pátria literária é a Áustria, onde também habitou. É que a literatura austríaca está recheada dessas imolações avassaladoras que tornam alguns poetas grandiosos e deixam outros leitores estupefatos: Thomas Bernhard, cuja obra é um irônico atentado terrorista aos alicerces da sociedade, talvez seja o epítome de uma tradição que anda sempre de mãos dadas com o fogo desde pelo menos o século 18. Dessa forma, do aforismo se depreende que, para Canetti, literatura verdadeira leva, ainda que involuntariamente, às últimas consequências o enfrentamento, e por que não, o escárnio em relação aos outros e, em decorrência disso, a si próprio. Ele também vê a maldade que está no dramaturgo Johann Nestroy, entende que mesmo a ofensa vinda de Robert Musil consola, encara Karl Kaus como “o mestre do espanto” e como o déspota brilhante que sufocou todos os que estavam à sua volta. Há sempre algo de doloroso e potente quando ele fala dos escritores daquele país.
Não quero arrancar a estranheza contida nas palavras, seu coração, como um sacerdote de sacrifícios mexicanos; odeio esses modos sangrentos. A estranheza só deve se apresentar em figuras, somente referindo-se a elas, nunca a palavras em si — nessa passagem, ele se compara a James Joyce e se diferencia dele justamente na maneira como encara a linguagem. Está clara em Canetti alguma necessidade de transparência. O que vai distingui-lo não são “aventuras insanas” com as palavras, mas a preferência por desestabilizar a partir do jogo sutil do comum. Faz sentido, portanto, quando ele diz que batiza os vocábulos com uma integridade sagrada, preferindo não cortá-los ou desviá-los de seu propósito mais presente. Por isso ressalta que insiste nas figuras. Desse modo é que funciona a surpresa armada contra os leitores. Suas metáforas e construções vêm de um lugar ao mesmo tempo poético e banal; percebe os autores com a agudeza de quem precisa lidar com um “animal monstruoso”, imagem que tomo de empréstimo a Peter von Matt, no posfácio. É como Canetti afirma em outro momento do livro: “Pois o que poderia ele [o poeta] fazer com as palavras que antes, sem a sua ação, não fosse já mais admirável e mais sinistro?”.
Era o exemplar da Caixinha de tesouros do próprio Kafka — em 1936, Canetti recebe a visita do recitador Ludwig Hardt no lugarejo onde morava ao redor de Viena. O homem decide mostrar-lhe o que possuía de mais valioso. “Quando vou dormir, eu o guardo embaixo do travesseiro”, afirma Hardt. Tira do bolso um livro. Na dedicatória em Caixinha de surpresas, de Johann Peter Hebel, lê-se: “A Ludwig Hardt, para dar uma alegria a Hebel, de Franz Kafka”. O exemplar havia pertencido ao próprio Kafka, que lhe dera após ouvi-lo, emocionado, recitar Hebel. A história ganha mais sabor para Canetti porque diz ter sido Hebel seu maior professor. E, com certeza, podemos aproximar os dois na concepção de uso poético da língua. “Não há palavras lassas, elas não se afrouxam nem rebentam de soberba, e a noção que fazemos da linguagem em geral torna-se verdade nele: cada uma das histórias que lemos nos toma e nos abandona com expectativa”, escreve sobre Hebel. É também um relato representativo de como Canetti lida com seus pares de ofício — a experiência assume importância central para que ele resolva abordá-los; o vivido marca-o profundamente; a literatura não é ambiente longínquo, mas mora no contato do humano.
Esta, penso, deveria ser a verdadeira missão dos poetas — esse “dom da transformação” é uma carta de intenções. Com transformação, Canetti entende que os escritores devem ser hábeis em se tornar outra pessoa, “mesmo a menor, a mais ingênua, a mais impotente”. Isso só pode se dar por meio da literatura porque nossa vida normal está atormentada por desejos contingentes, mesquinhos. Classifica-se como um prazer próprio de outra ordem; difere, em sua particularidade, da mera empatia, uma vez que é reelaborada em fenômeno poético. Em outras palavras, Canetti condensa o que é o exercício ético e estético da literatura: aportar na outra margem do oceano e, lá chegando, perceber que a ilha em que habita o Outro é infinita.
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