Você descobre que vai morrer e o médico ainda te estima um tempo: “Três ou quatro meses de vida”. Quem já imaginou essa situação talvez tenha algum plano. E quem nunca imaginou também, só que ainda não se deu conta disso. Saber que vai morrer, no abismodeste entendimento, exige alguma atitude.
Lições de Abismo (1959, Vide Editorial) é o único romance do escritor Gustavo Corção. Ele foi um autor católico que sempre expressou sua fé por meio de artigos contundentes em jornais de grande circulação nas décadas de 1960 e 1970. Dentre as suas obras, O Desconcerto do Mundo é um deslumbrante livro de ensaios, e A Descoberta do Outro, um comovente relato de conversão.
O protagonista de Lições de Abismo é José Maria, mas só sabemos seu nome ali pela página 70. É como se ele não fosse ninguém até então. Trata-se apenas de um homem que vai morrer, atormentado pela certeza das certezas: “A morte é o que há de mais certo (...) e é por outro lado a ideia que mais nos custa admitir (...) É uma certeza que anda ao contrário das outras”.
Primeiros refúgios: Tolstói, Voltaire e Machado
Enquanto o médico Dr. Aquiles analisa o tórax de José Maria, o angustiado paciente observa um crucifixo na parede. Sem qualquer esperança, acusa o doutor de colocar aquilo como uma “nota de consolo” ou só um “lugar-comum silencioso”. Renegada a cruz, José Maria começa sua jornada em direção ao abismo.
Sendo um intelectual, ele se socorre primeiramente de seus livros. A primeira leitura é o clássico de Liev Tolstói, A Morte de Ivan Ilitch, uma das descrições mais exatas de um convalescente. Também recorre à análoga obra de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, relato carregado de cinismo. De Voltaire, ele pega apenas uma frase, tão óbvia quanto indiferente: “A espécie humana é a única a saber que deve morrer, e sabe-o pela experiência”.
Diferente de Brás Cubas, José Maria deixaria sua miséria como legado. Raul é o filho com o qual ele perdeu o contato, fruto de sua relação com Eunice, de quem se separou. O protagonista se vê brutalmente solitário e a morte é, de início, uma solução para a sua desordem interior.
Tateando a criação divina
“Respirei com prazer”, o tormento da finitude dá uma trégua e José encontra alguma tranquilidade em uma caminhada. Até esquece de sua condição ao observar, como se fosse a primeira vez, uma árvore. Ou aquele “bizarro monstro imóvel e gesticulante”, descrição ingênua, mas não menos verdadeira por isso.
Em seguida, surge uma cotia e o espanto com aquela “autonomia graciosa e magnífica” é o mesmo. O movimento da cotia expande o exemplo da árvore e José dá o primeiro passo para fora do abismo. Há, de forma evidente, uma separação entre a cotia e o Universo.
O romance tem características ensaísticas e, em passagens assim, Corção ataca a ideia contrária. Um biólogo que observasse a cotia diria se tratar somente de um “composto de células” ou um “fugaz conjunto de grãos de que é feito o universo”. Descrições precisas, que serviriam para a cotia, para a árvore e, em um salto natural e perigoso, para o próprio homem.
É aqui que José Maria fecha os olhos e experimenta algo “inexprimível”. Esse ato tão banal, em que a realidade se desfaz no descer das pálpebras, o leva ao caminho de uma verdade mais íntima. Há também, nele, uma separação, mas de outra natureza. Eis a primeira lição do abismo: “Eu me excetuo de um modo novo”.
A moça do café e os brincos mais bonitos
Em um café, José Maria vê a mulher que serve as inúmeras xícaras todos os dias. Compara-a a uma “rosa trigueira e frustrada” – as rosas são seu modelo de beleza. Mas a beleza dela é cansada, quase ocultada pelo avental manchado. É nessa fragilidade que José se reconhece e percebe que ela também vai morrer.
José não sente pena, mas sim piedade. A piedade leva alguém a tomar um gesto extremo, enquanto a primeira é quase sempre estéril. Decide então comprar os “brincos mais bonitos do mundo”, depois que a ouve dizer que gostava de brincos. José Maria compra dois luxuosos rubis do oriente, que parecem “duas gotas de sangue”. Aqui há o eco da Unção de Betânia (João 12, 1-8) e, em última instância, do sangue salvífico da cruz.
Aos poucos, José Maria passa a se sentir inteiro, devolvido a si mesmo e reata a “absurda fé num absurdo amor”. Ele percebe que a única verdade é aquela capaz de se transformar em seu próprio sangue, não aquela outra verdade “ortopédica”. Ou seja, aquelas ideias que nos agradam e que nos dão, no máximo, algum conforto momentâneo.
Refúgio definitivo: a verdade maior
Até o final do livro, Corção ainda vai criticar outras “verdades ortopédicas” que duramente combateu em seus artigos. Sobra para o evolucionismo, a psicanálise, o existencialismo e o marxismo. Todas teorias que afastam o homem de sua essência e o transformam em uma aglomeração de átomos e, quando muito, em um detalhe da história.
Lições de Abismo conta a busca por uma verdade maior, por uma que tenha uma ressonância dentro de nós. Deus se aproxima por meio do silêncio e a fé é este ato de confiança em algo que, inacreditavelmente, reverbera no homem, durante a vida e na morte.
Ao final, Gustavo Corção parece salvar apenas uma obra, Solilóquios, de Santo Agostinho, especialmente o trecho: “Conhecer Deus e minha alma, eis tudo o que quero saber”. E José Maria só compreende a morte depois que reconhece que alguém, uma presença, morreu antes de nós.
Justiça do Trabalho desafia STF e manda aplicativos contratarem trabalhadores
Parlamento da Coreia do Sul tem tumulto após votação contra lei marcial decretada pelo presidente
Correios adotam “medidas urgentes” para evitar “insolvência” após prejuízo recorde
Milei divulga ranking que mostra peso argentino como “melhor moeda do mundo” e real como a pior
Deixe sua opinião