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Trata-se de uma prática bastante rara na antologia do cinema, mas há casos aqui e ali de cineastas que, passados alguns anos, decidiram refilmar uma obra que eles mesmos assinaram anteriormente. Um deles é Cecil B. DeMille que, em 1923, ainda na fase silenciosa, dirigiu Os Dez Mandamentos, traduzindo em imagens a passagem bíblica que nos apresenta Moisés; 33 anos depois, portanto em 1956, DeMille revisitou a história e lançou uma nova e ainda mais grandiosa versão do filme. Não foi por acaso. Cecil B. DeMille gravou seu nome na história de Hollywood como pioneiro da indústria americana. Em 1913, ao lado de Jesse L. Lasky e Samuel Goldwyn, fundou a Lasky Film Company (que anos mais tarde se transformaria na Paramount Pictures). DeMille sempre foi um visionário, magnificente, que vislumbrou na tela do cinema a possibilidade de uma imersão suntuosa. Nesse sentido, a Bíblia por diversas vezes ofereceu ao diretor o material dramático mais apropriado e que atendia aos seus anseios.
Após assinar Sansão e Dalila, em 1949, DeMille dirigiu vários outros projetos, mas sempre tendo em mente recontar aquela que é considerada a mais importante passagem da Bíblia (do livro de Êxodus): a epopeia de Moisés, profeta e maior líder do judaísmo, escolhido como instrumento de Deus para libertar os Hebreus da escravidão no Egito e guiá-los até a Terra Santa. Os Dez Mandamentos (disponível no streaming Globoplay e para locação pela Claro, Prime, Google e AppleTV) utiliza algumas licenças poéticas e nos mostra como, no Egito de 1300 anos antes de Cristo, nasce Moisés. Uma vez que o Faraó havia decretado o assassinato de todos os primogênitos dos israelitas, a jovem mãe Joquebede decide colocar seu bebê recém-nascido num cesto e deixá-lo seguir seu caminho nas correntes do rio Nilo. O cesto vai encalhar justamente às margens do palácio, e o bebê será adotado pela filha do faraó, recebendo assim o nome de Moisés.
O menino cresce num universo luxuoso, sendo bem-educado e aproveitando as boas oportunidades garantidas pelo faraó. Alcança a idade adulta e, ainda que mantenha uma relação conflituosa e de disputa com Hamsés (Yul Brynner), o filho do faraó e legítimo herdeiro do trono, Moisés (Charlton Heston) é visto e tratado por todos como príncipe do Egito. Até o dia em que o passado vem à tona e a verdade sobre a origem hebreia de Moisés é revelada. Hamsés, agora o faraó, poupa Moisés da morte, mas o expulsa do Egito. Vagando moribundo pelo deserto, Moisés acaba chegando a um vilarejo numa região montanhosa e é acolhido pela tribo de Jethro, um ancião que tem sete filhas. Passado algum tempo, Moisés se casa com uma das jovens, Zipora (ou Sephora), e é quando ele começa a ouvir os chamados de Deus. Para uma incumbência dada muito tempo antes a Abraão, o Criador agora escolhe Moisés como aquele que deverá ser o líder e libertador do povo de Israel.
Versão de 2014 também vale
Tudo até aqui – e assim seguirá até o final – pode ser chamado de um espetáculo cinematográfico que salta aos olhos. DeMille realizou um de seus mais ambiciosos projetos, contando com algumas das maiores estrelas da época (como Charlton Heston, Anne Baxter, Yul Brynner, Edward G. Robinson, Yvonne De Carlo e Vincent Price). O diretor também fez filmagens em locações como Sinai e o Mar Vermelho, ainda que as imagens tenham sido usadas em sobreposição, com os atores dentro do estúdio, praticamente inaugurando a técnica de efeito especial do fundo azul (ou verde). É evidente que nossos olhos, hoje mais treinados e habituados aos modernos e espetaculares efeitos visuais feitos em computador, podem preferir assistir ao magnífico Êxodus: Deuses e Reis (no streaming Star+), obra requintada feita em 2014 por Ridley Scott e que conta a mesma história, com Christian Bale no papel de Moisés. A diferença é que Êxodus acaba deixando de lado o tom mais romântico e novelesco do filme da década de 50. Nos Dez Mandamentos de DeMille podemos até perceber rapidamente as imperfeições, algumas até grosseiras, só que nada diminui o refinamento do diretor, o excelente trabalho de sua equipe de fotógrafos, diretores de arte e figurinistas que tiveram de lidar com algumas centenas de atores extras.
É exatamente o que acompanhamos nas sequências a seguir, quando Moisés atende à ordem de Deus e decide voltar ao Egito com o propósito de libertar seu povo. Veremos um enfrentamento entre ele e Hamsés, que, ao se recusar pela libertação dos escravos israelitas, sofrerá uma série de infortúnios (que conhecemos como as pragas do Egito). Quando, vítima de uma dessas pragas, o filho do faraó morre, Hamsés finalmente ordena que Moisés saia do Egito e leve seu povo com ele.
São catárticas ou, no mínimo esfuziantes, as belas cenas de uma multidão cruzando o deserto, culminando na famosa sequência em que Moisés ergue seu cajado e, com o poder de Deus, abre as águas do Mar Vermelho para que seu povo siga o caminho de Canaã. São igualmente poéticas e ao mesmo tempo caóticas as cenas em que Moisés sobe até o Monte de Horebe para receber as Tábuas das Leis e, ao descer muitos dias depois para proferir os Dez Mandamentos, encontra seu povo rebelando-se e provocando a ira de Deus. Como punição, os israelitas vagaram perdidos por 40 anos no deserto antes de alcançar a Terra Prometida. Como diz a Bíblia e podemos ver no filme, a Moisés só foi permitido chegar ao alto do Monte Nebo, na Planície de Moabe, de onde pôde contemplar Israel à distância. Ele jamais colocou os pés na Terra Santa.
Cecil B. DeMille parecia saber do grande impacto que o filme causaria. Por isso mesmo, e de forma inédita, ele mesmo aparece na tela no início do filme para apresentar sua obra ao público. DeMille conhecia bem os riscos, uma vez que consumiu mais de U$ 13 milhões na produção, mas no final das contas todo o esforço, cuidado e apuro técnico valeram à pena: o filme fez um enorme sucesso, arrecadou mais de U$ 120 milhões e conquistou status de clássico e até hoje é considerado uma obra-prima do gênero.