Em 1933, não houvesse morrido prematuramente, Euclides da Cunha (1866-1909) teria 67 anos, quando Gilberto Freyre (1900-1987) lançou Casa-grande & senzala. Provavelmente tomaria conhecimento da obra do pernambucano, cuja repercussão nos meios intelectuais de então fora tão grande quanto a de Os sertões, em 1902. Não se encontraram fisicamente, mas os dois perfis escritos por Gilberto (1944 e 1966)[i], são uma espécie de diálogo unilateral. Quem prestar atenção nas entrelinhas notará uma trama sutil: Gilberto nos mostra Euclides pela vidraça cristalina do seu talento crítico; mas a vidraça — percebe-se — também é espelho e o fotógrafo se retrata de corpo inteiro. Com engenho e arte, ao falar do outro, ele está (quase) sempre falando de si próprio.
Num trecho elucidativo, depois de pespegar ser Euclides uma espécie de faquir que à mesa “era a tortura das donas-de-casa”, Gilberto emenda, maroto:
Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem almoços à baiana, com vatapá, caruru, efó, nem feijoadas à pernambucana, nem vinho, nem aguardente, nem cerveja, nem tutu de feijão à paulista ou à mineira, nem sobremesas finas segundo velhas receitas de iaiás de sobrados, nem churrascos, nem mangas de Itaparica, abacaxis de Goiana, açaí, sopa de tartaruga, nem modinhas ao violão, nem pescarias de Semana Santa, nem ceias de siri com pirão, nem galos de briga, nem canários do Império, nem caçadas de onça ou de anta nas matas das fazendas, nem banhos nas quedas-d’água dos rios de engenho — em nenhuma dessas alegrias caracteristicamente brasileiras Euclides da Cunha se fixou[ii].
O texto, sensorial como poucos, escancara — no excesso de detalhes, na profusão de exemplos aliciantes, na narrativa frondosa — a clave da análise freyreana. O contraponto está subjacente: tudo aquilo a que o quase anoréxico Euclides se negava para Gilberto eram as delícias de viver. O próprio Euclides corrobora a índole agreste em cartas aos amigos, definindo-se como um “tímido”, “selvagem”, “filho da roça”, impregnado de “melancolia irremediável”, “pessimismo incurável com que vou atravessando esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis”, “nesta vida erradia e desassossegada”[iii].
À certa altura, Gilberto realça o retrato euclidiano com tintas psicanalíticas: a mãe morta quando ele tinha apenas três anos, a grande dor do vazio, a falta de um amor de verdade, o teriam levado a projetar na República a figura da mulher ideal. E cita teorias que atribuem “à angústia, ou ao desajustamento do indivíduo ao meio, um singular poder criador”. Assim, o estudo do caráter do escritor-engenheiro-militar jogaria luz sobre sua escrita complexa e atormentada.
No jogo de verso e reverso emergem dois perfis, num contraste quase simétrico: de um lado, o asceta, o apolíneo, o angustiado; de outro, o hedonista, o dionisíaco, o sensual. Euclides, arredio, introspetivo. Gilberto, provocador nato (“Ele adorava escandalizar” — define a antropóloga Fátima Quintas, discípula e amiga)[iv]. O homem que não teve infância criou uma escrita solene, grandiloquente, ortodoxa; o menino feliz que nunca abandonaria totalmente o adulto escreveu num estilo heterodoxo para os padrões acadêmicos, com algo de épater le bourgeois.
Para além dessas antinomias, tinham em comum alto senso de missão, estavam empenhados em interpretar o Brasil e possuíam coragem intelectual para ir contra a corrente. Eram vaidosos (Euclides, inseguro em sua vaidade; Gilberto, autoconfiante, a proclamar-se na velhice, com razão:“Eu me considero um gênio”)[v]. Como pretendiam, contribuíram seminalmente para a compreensão de quem somos e, por tabela, alcançaram a glória.
Metamorfoses
Euclides da Cunha e Gilberto Freyre foram reescritos por suas obras. Engolfados pelo zeitgeist, eram contaminados pelo “racismo científico” como quase toda a intelectualidade brasileira. Euclides, filho de um contador que virou pequeno fazendeiro, intelectual do século 19, formado pela Escola Militar (pública), chegou a Canudos com o coração republicano e a cabeça entupida da ciência dominante (segundo a qual as raças superiores esmagariam as raças inferiores e a mestiçagem era intrinsecamente um mal). Também estava convencido, com a opinião pública insuflada pela mídia, de que Canudos era um reduto monarquista (versão difundida pelos fazendeiros e o clero baianos).
Ao conhecer o cenário da guerra, Euclides esfrega os olhos: a cidadela inimiga não passava de uma “Troia de taipa” e o inimigo feroz eram caboclos e caboclas famintos, esfarrapados, armados de espingarda soca-soca, que só queriam uma terrinha para plantar e louvar a Deus em paz. Então era contra aqueles miseráveis que a imprensa e os poderes mobilizaram a nação? Como aquela sub-raça inferior poderia ter rechaçado três expedições do Exército Brasileiro? Quem eram os verdadeiros bárbaros, diante das atrocidades cometidas pela tropa? E por fim: a verdade é o que estava nos compêndios ou o que se desenrolava à sua frente?
Sabe-se: Euclides volta da guerra abalado pela colisão entre sua base teórica e tudo que viu. Denuncia corajosamente o massacre dos camponeses (inclusive as degolas), mas sem poder apagar de uma borrachada sua cosmovisão, tenta contornar o impasse: o caboclo sertanejo seria uma exceção às teorias das raças, por ter escapado a sucessivas miscigenações graças ao isolamento geográfico. E se tornara a rocha viva da nacionalidade. Isso, claro, não resolvia a contradição básica entre o ideário do livro e a profunda empatia do autor pelos vencidos.
Gilberto teve uma trajetória cultural muito diferente. Filho de família tradicional, com fumaças aristocráticas de neto de senhor de engenho, teve a oportunidade de, aos 18 anos, ir para os Estados Unidos realizar seus estudos superiores. Intelectual do século 20, teve contato direto com a vanguarda científica da época, que trocara a noção de raça pela de cultura para explicar a evolução dos povos. Voltou ao Brasil, circulou pela Europa e uma década e meia depois tinha outra visão de mundo. Por aqui, entretanto, o ambiente sociocultural não havia mudado tanto, pelo menos no tocante à questão das raças. Em 1932, Oliveira Viana havia lançado um erudito estudo, onde esgrimia conceitos como “evolução arianizante dos nossos mestiços”, “seleção eugênica da imigração” e “corrupção do sangue” e afirmava que entre os negros os “tipos intelectualmente superiores” existem em proporção “incomparavelmente menor do que, por exemplo, nas raças arianas ou semitas”.[vi]
No ano seguinte, Casa-grande & senzala explodiu como uma bomba entre a inteligentzia brasileira. Gilberto não apenas colocava o negro parelho ao branco como colonizador do Brasil, mas alçava a mestiçagem a fator positivo, base de uma nova civilização nos trópicos.
Vicente do Rego Monteiro, o grande pintor pernambucano, companheiro de Gilberto em excursões culturais e boêmias pela Europa uma década antes, caiu de pau no ex-amigo: o livro era a “mais descabelada pornografia” e devia ser censurado. Choveram desaforos do lado conservador: “rabelaisiano”, “pornógrafo”, “subversivo”, “esquerdista” e “comunista”. No outro espectro ideológico, era recebido como obra revolucionária, que mudava nossa própria concepção de Brasil.
Como Os sertões, CG&S é um livro contraditório, mas diferentemente do caso de Euclides a contradição em Gilberto é deliberada. Adotando o método conhecido por “equilíbrio de antagonismos” — uma espécie de dialética sem síntese —, ele oscila entre uma visão nostálgica, proustiana, benevolente, do mundo patriarcal e a denúncia contundente dos malefícios da escravatura em nossa formação social. Quem chegara a escrever nos seus verdes anos que “quem vivia vida doce no Brasil escravocrata eram antes os escravos que os senhores”[vii], condenava agora “o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um deus poderoso, em senhores e escravos”. Denunciava o sadismo do brasileiro privilegiado como legado daquela mentalidade e narrava barbaridades como a de que certos senhores “mandavam queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas”. Tal dualidade nada inocente — muito atenuada no livro seguinte, Sobrados & mucambos(1936), bem menos contaminado pelo memorialismo — marcará a obra como essencialmente polêmica.
O solene e o coloquial
Uma discussão recorrente sobre Os sertões diz respeito ao seu gênero literário. Os acadêmicos divergiram, variando da posição de Afrânio Coutinho, que — valorizando seus recursos estéticos em face do puro relato histórico — tasca-lhe o rótulo de ficção[viii], até a de Luiz Costa Lima, para quem “a explosão do lugar reservado à literatura não torna Os sertões obra literária”[ix], passando por José Guilherme Merquior a mostrar que há ali uma “obra de ficção embutida no ensaio”[x]. Talvez Victória Saramago tenha posto os pontos nos ii na discussão já amadurecida pelo tempo e pelos ricos aportes críticos, quando afirma:
O que fez, no entanto, com que esses tantos outros desaparecessem, ao passo que Os sertões se tornou epopeia nacional, um dos documentos-símbolo da nacionalidade brasileira? Qual era a força dessa obra, que escapava às outras e que determinou sua permanência na tradição literária brasileira? A essas questões, a meu ver, não há resposta possível sem levar-se em conta o aspecto literário da obra. Parece-me ser em grande parte devido à atemporalidade da obra de arte, que a leva a ultrapassar o contexto histórico e se firmar como uma obra permanentemente atual, que Os sertões manteve sua força e seu interesse até os dias de hoje.[xi]
Apesar da hesitação de Euclides entre a teoria e o testemunho, o livro virou best-seller imediato. O beletrismo tupiniquim saudou-o com urras, julgando, equivocadamente, tratar-se de um dos seus exemplares. E ele fazia-lhe concessões, ao abusar da “demonstração de cultura tão do gosto da sua época, assegurando-lhe aceitação e respeito”, conforme Olímpio de Souza Andrade[xii]. Mas Euclides não “escrevia difícil” (apenas) por ostentação. Sua linguagem correspondia a um projeto estético, como deixou claro ao responder a José Veríssimo (que reconhecera de pronto a grandiosidade da obra, mas condenara o “tom rebuscado, gongórico e artificial da linguagem”), com a famosa fórmula “o consórcio da ciência e da arte”, “desde que não se exagere ao ponto de dar um aspecto de compêndio ao livro”[xiii]. Mas ele exagerou e chegou próximo de cometer um compêndio, como assinala Gilberto Freyre:
A verdade é que Euclides da Cunha escreveu perigosamente. (...) Escreveu num estilo não só barroco — esplendidamente barroco — como perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos: (...) salvando-se como um bailarino perito em saltos mortais, de extremos de má eloquência que o teriam levado à desgraça literária ou ao fracasso artístico[xiv].
Além de relativizar o fator etnográfico na obra, Gilberto a compara a uma ópera, acentua seu caráter heroico, destaca sua complexidade, define-a como sobretudo literária e conclui com a louvação desinteressada de que “talvez exceda em importância, em extensão e mesmo em profundidade a de qualquer outro intelectual brasileiro”. E arremata: “Foi escritor dos grandes: dos animados do gênio da revelação”.[xv]
São célebres numerosíssimas passagens — da própria abertura do livro (um traveling do litoral ao interior brasileiro de tirar o fôlego) ao final agônico (“Canudos não se rendeu...”) — a atestar o lugar único de Os sertões na literatura de língua portuguesa. Para degustação de quem ainda não leu, dou um fiapo de exemplos de referências à Natureza, da mais alta potência poética: “bromélias desabotoando em floração sanguinolenta”; “o aspecto atormentado das paisagens”; “a flora sucumbida”; “as areias incendidas”; a “imensa solidão das águas”.
Ao mesmo tempo, Euclides podia se despir de todo ornato retórico e tecer esta cena estupenda, em que descortina o absurdo da guerra fraticida no diálogo surrealista entre iguais:
A vida normalizara-se naquela anormalidade. Despontavam peripécias extravagantes. Os soldados da linha negra, na tranqueira avançada do cerco, travavam, às vezes, noite velha, longas conversas com os jagunços. O interlocutor da nossa banda subia à berma da trincheira e, voltado para a praça, fazia ao acaso um reclamo qualquer, enunciando um nome vulgar, o primeiro que lhe acudia ao intento, com voz amiga e lhana, como se apelidasse algum velho camarada; e invariavelmente, do âmago da casaria ou, de mais perto, de dentro dos entulhos das igrejas, lhe respondiam logo, com a mesma tonalidade mansa, dolorosamente irônica. Entabulava-se o colóquio original através das sombras, num reciprocar de informações sobre tudo, do nome de batismo, ao lugar do nascimento, à família e às condições da vida. Não raro a palestra singular derivava a coisas escabrosamente jocosas e pelas linhas próximas, no escuro, ia rolando um cascalhar de risos abafados. O diálogo delongava-se até apontar a primeira divergência de opiniões. Salteavam-no, então, de lado a lado, meia dúzia de convícios ríspidos, num calão enérgico. E logo depois um ponto final — a bala...
Retornando ao paralelismo entre autores e obras, a simetria reversa no campo estético mantém-se: se a linguagem barroca de Euclides, brilho à parte, sofrera restrições pelo tecnicismo, a escrita de Gilberto recebeu críticas por motivos opostos: ser “pouco científica”, “vulgar”. Gilberto escrevia como quem conversava, misturando termos sociológicos, norma culta e fala popular, de modo aparentemente desleixado. Absolutamente nada da solenidade euclidiana. No mundo acadêmico, soava quase como uma ofensa pessoal. Também causaram estranheza questões metodológicas, como a utilização de motivos triviais, como cartas, receitas, diários pessoais, assim como a descrição pormenorizada de comportamentos sexuais e hábitos escatológicos. Até Mário de Andrade anotou à margem do seu exemplar do livro: “Gilberto deveria ter subido ao salão depois de se ter demorado, talvez demais, no WC”.[xvi]
Imagine-se o escândalo entre os conservadores pelo uso do vocabulário chulo das ralés, em trechos como este:
(...) homens casados casando-se outra vez com mulatas; outros pecando contra a natureza com efebos da terra ou da Guiné; ainda outros cometendo com mulheres [o que] se chama de felação (...); desbocados jurando pelo “pentelho da Virgem”.
Da permanência
Ao longo do tempo, Euclides foi primeiro exaltado pelo beletrismo, quase excomungado por sua ciência racista superada (Walnice Nogueira Galvão o reenquadrou como “defensor dos oprimidos”)[xvii] e, por fim, reentronizado por seu “esplendor literário”[xviii]. Gilberto, inicialmente execrado pelos conservadores e louvado pela esquerda, à medida que se deslocava no espectro ideológico teve sua obra colocada no limbo acadêmico, para gáudio do emburrecimento nacional. O ostracismo só começaria a ser quebrado por Darcy Ribeiro em 1977, no célebre prefácio da edição venezuelana de CG&S, a que chamou de “o mais brasileiro dos livros”. Mais recentemente Hermano Viana ironizou “o mito do mito da democracia racial” (expressão que não consta na obra ainda polêmica)[xix]. Desconfio que o Brasil mudou imensamente nesse tempo todo — mais na superfície que nas profundezas da alma nacional. Basta olhar em torno ou navegar na internet: aí estão a herança maldita da escravidão, em especial o estigma da cor[xx], o preconceito contra nordestinos etc. Os sertões e CG&S não são leituras para iniciantes. Mas os leitores experientes que, por preguiça ou receio, não os encararam ainda, saibam que vale a pena o esforço. Porque, tanto Gilberto quanto Euclides — complexos, contraditórios, certos, errados, geniais — ainda têm o que nos dizer. E como!
[i]
Reunidos em Perfil de Euclides e
outros perfis. Rio: Record, 1987.
[ii] Obra citada, p 41.
[iii] Euclides da Cunha. Cartas. Obras completas. Edição digital.
[iv] Depoimento pessoal em 17/05/2019.
[v] Respondendo a pergunta indutora de Geneton Moraes Neto, na TV Globo, em 15/03/1983, disponível em: http://g1.globo.com/pernambuco/videos/v/reveja-entrevista-de-geneton-moraes-neto-com-gilberto-freyre-em-1983/5254484/
[vi] Oliveira Viana. Raça e assimilação, 3ª edição S. Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, pp 60, 90, 272 e 281.
[vii] Apud Enrique L. Larreta e Guillermo Giucci. Gilberto Freyre, uma biografia cultural. Rio: Civilização Brasileira, 2007, p 288.
[viii] Afrânio Coutinho. “Os Sertões, obra de ficção”. Euclides, Capistrano e Araripe. Rio: Edições de Ouro, 1967, p11.
[ix] Luiz Costa Lima. Terra ignota. A construção de Os sertões. Rio: Civilização Brasileira, 1997, p 206.
[x] José Guilherme Merquior. De Anchieta a Euclides — Breve história da literatura brasileira. Rio: José Olympio Editora, 1977, p 153.
[xi] Victória Saramago. “Os sertões — Arte e história” Cadernos do CNLF, 60 vol.XII, nº 15, 2008, p 64.
[xii] Olímpio de Souza Andrade. História e interpretação de Os sertões. São Paulo: Edart, 1960, p 204.
[xiii] Euclides da Cunha, Cartas...
[xiv] Perfil..., p 52.
[xv] Perfil..., pp 62-64.
[xvi] Apud Larreta e Giucci. Obra citada, p 448.
[xvii] Walnice Nogueira Galvão. “Sob o signo de Euclides — um depoimento”. Revista Brasileira, no 62. Academia Brasileira de Letras, Janeiro-Fevereiro-Março 2010.
[xviii] Merquior. Obra citada, p 196.
[xix] Hermano Viana. “A meta mitológica da democracia racial”. In: O imperador das ideias — Gilberto Freyre em questão. Joaquim Falcão e Rosa Maria Barboza de Araújo (org.). Rio: TopBooks/Fundação Roberto Marinho, 2001, pp 215-216.
[xx] Jacques Lambert. Os dois Brasis. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, pp 90-93.
© 2019 Rascunho. Publicado com permissão.
Deixe sua opinião