Ouça este conteúdo
Quantas mortes valem 4,5 bilhões de dólares? Nenhuma, mas esse foi o valor pago por uma empresa farmacêutica para se livrar da culpa por viciar milhares de pessoas em um remédio que é da mesma família da heroína. Grosso modo, essa é a história contada por Império da Dor, reveladora minissérie recém-lançada pela Netflix.
Baseados em um livro reportagem do jornalista Radden Keefe, os episódios mostram como a Purdue Pharma criou um medicamento mais potente do que a morfina e o transformou num campeão de vendas graças a uma estratégia de marketing agressiva. Uma das técnicas, mostrada logo no primeiro capítulo, era de contratar belas jovens estudantes para se aproximar de médicos e donos de farmácia para vender o produto conhecido como OxyContin. O absurdo é tanto que a substância tinha até uma mascote de pelúcia no estilo Zé Gotinha.
Fica implícito no seriado que essa e outras atrocidades partiram da mente de Richard Sackler, interpretado por Matthew Broderick. O executivo assume as rédeas da empresa depois que seu tio, Arthur Sackler, morre. Em diversas cenas, o personagem imagina conversas com o familiar falecido, uma forma de reforçar que ele foi seu grande mentor. Arthur Sackler também foi um dos grandes defensores da lobotomia como modelo de negócio.
Este recurso inusitado de exibir o sobrinho executivo batendo papo mentalmente com o tio fundador é um dos aspectos que elevam o nível artístico de Império da Dor. E ter um diferencial era necessário, visto que outra minissérie dramática, Dopesick (Star+), já havia abordado o mesmo tema com grande maestria.
A série perde alguns pontos por se esforçar para pintar a família Sackler com o clichê de uma dinastia capitalista que só quer causar mal à humanidade, como se essa fosse uma característica de todas as pessoas ricas. Mas é inegável que, nesse caso, Richard e seus parentes agiram de maneira imoral e sem preocupação com a vida de seus clientes, o que motiva o retrato extremo.
Depoimentos tocantes
Antes de cada um dos seis episódios começar, o familiar de alguém que sofreu overdose do remédio altamente viciante compartilha da sua dor e realça que a história é baseada em fatos reais. Eles ajudam a dar o tom de outros dois grandes personagens da trama, a investigadora Edie Flowers e o mecânico Glen Kryger.
A primeira parece uma mulher muito arrogante nas cenas iniciais, mas logo descobrimos que ela é uma burocrata obstinada em derrubar sozinha o sistema de distribuição dos opioides vendidos pela Purdue. É a partir da visão dela que acompanhamos a proliferação da droga em clínicas e entendemos alguns dos métodos usados para empurrá-la aos doentes. Vale dizer que Edie Flowers, que é de suma importância para a série, não está no livro original, foi criada pelos roteiristas de Império da Dor.
Já Kryger oferece o foco narrativo mais dramático da história. Profissional batalhador e pai de dois filhos, ele sofre um acidente após uma brincadeira adolescente de seu primogênito e acaba fraturando a coluna. A dor que está no título da minissérie é bem traduzida para a tela com cenas mostrando a cirurgia – que geram muita aflição – e sua luta na recuperação. Tragicamente, tentando amenizar o problema, Kryger recebe do médico da família a receita para o OxyContin e se torna um viciado. Sua trajetória, também desenvolvida exclusivamente para o produto da Netflix, é a mais realista e honesta de todas, por ser um amálgama das famílias que foram vitimadas pelo medicamento e têm seus casos apresentados no livro de Keefe.
O lançamento chega em um bom momento para alertar o mundo do risco que alguns medicamentos para a dor podem oferecer. Segundo o Instituto Nacional da Saúde, dos Estados Unidos, mais de 70 mil pessoas morreram por overdose de remédios como o OxyContin em 2021. O dado fica ainda mais chocante quando lembramos alguns dos nomes ilustres que tiveram a vida encurtada pelo vício no opioide, casos do ator Heath Ledger, do cantor Tom Petty e do lutador Stephan Bonnar.