Em uma análise superficial, uma canção que tem em seu refrão a palavra “aleluia” cantada quatro vezes não parece uma má adição para a playlist natalina ou para as inescapáveis apresentações de corais em escolas e shopping centers. Contudo, Hallelujah, que se tornou onipresente não apenas nesta época do ano como em celebrações de casamentos e em funerais, precisa ter seu conteúdo melhor analisado antes que vire uma nova Imagine, a composição de John Lennon que clama com por um mundo sem religiões e, ironicamente, está sempre presente em cerimônias religiosas. Se bem que talvez não haja mais tempo de se reverter esse jogo.
“Bem, ouvi dizer que havia um acorde secreto que Davi tocou e agradou ao Senhor” seria a tradução da primeira frase de Hallelujah, lançada originalmente pelo cantor canadense Leonard Cohen, em 1984. A letra, de cara, apresenta uma clara referência bíblica. Porém, a chegada do verso seguinte muda tudo: “Mas você realmente não liga para música, não é?” O narrador-personagem está conversando com alguém que não necessariamente possui fé, uma característica que se aprofunda conforme o desenrolar da composição.
Cohen então descreve a existência do “santo aleluia”, aquele usado na Igreja, e do “despedaçado aleluia”, que seria uma forma de chegar próximo do divino pelo pecado, pelo menos em sua concepção. Tendo isso em mente, surge a questão: como Hallelujah, uma canção cheia de dualidades, acabou dominando o universo gospel?
Um ogro na confusão
Quando o canadense registrou sua obra mais famosa, ela não fez sucesso. Cohen estava em um momento fraco da carreira, não tinha muitos fãs, mas era bastante respeitado por músicos contemporâneos. Foi exatamente isso que deu à canção novas proporções.
Primeiramente, o cantor Bob Dylan começou a interpretá-la em alguns de seus shows, em 1988. Depois foi a vez de John Cale, que integrou a cultuada banda The Velvet Underground. Em 1991, Cale ficou sabendo que Cohen havia descartado alguns versos ainda mais pesados da versão original de Hallelujah, então pediu para que o letrista encaminhasse os trechos, dentre eles o mais infame: “Talvez haja um Deus lá em cima. E tudo que aprendi com o amor foi como atirar em alguém que se saiu melhor do que você”.
Essa versão de Cale, consideravelmente mais próxima de uma blasfêmia e presente num álbum em tributo a Cohen, foi a que roubou a atenção do jovem cantor e guitarrista Jeff Buckley, que a interpretou no disco Grace, de 1994. Com a morte precoce do talentoso Buckley, em 1997 (ele foi vítima de um afogamento aos 30 anos), Hallelujah decolou de vez, virando a escolha perfeita para quem pretendia demonstrar alta versatilidade vocal – vale lembrar que, antes dos falsettos emocionantes de Buckley, a canção só havia sido interpretada por cantores de estilo trovador e nada virtuoses, como Dylan, Cale e o próprio Cohen.
Com esse renascimento, treze anos após seu lançamento original, a canção (na versão de Cale) acabou entrando na trilha-sonora do filme Basquiat: Traços de uma Vida, que por sua vez parou nos ouvidos de Andrew Adamson, diretor musical da animação Shrek, um dos grandes sucessos de bilheteria deste milênio. Ele conta que estava procurando uma música triste para usar no desenho, até que esbarrou com ela no longa-metragem sobre o pintor nova-iorquino. “A música aparece em um momento de ironia emocional, pegando aquilo que é uma celebração e transformando-a em algo contrário”, conta em uma entrevista para o livro The Holy or The Broken, escrito pelo jornalista Alan Light para entender a transformação de Hallelujah ao longo dos anos.
“Eu esperava que o estúdio me pressionasse a fazer algo mais popular, o que eles costumam fazer, mas a emoção realmente superou a expectativa”, continua Adamson, que incluiu o fonograma na cena em que a princesa Fiona está brigada com o ogro Shrek e decide se casar com um homem que não ama. Mas esse detalhe da ironia passou batido pelo público brasileiro e deu ideia para muitas pessoas se casarem ao som da canção bonitinha com quatro aleluias por refrão, consequentemente a tornando mais comum em ambientes religiosos.
Aleluia trezentas vezes
Em 2023, Hallelujah está ao lado de Yesterday dos Beatles no hall de canções com mais covers e versões alternativas. Segundo a revista American Songwriter, existem mais de 300 interpretações, com esforços notáveis de nomes como Rufus Wainwright (cuja releitura foi a que entrou no CD com a trilha sonora de Shrek, que vendeu horrores em 2001), Willie Nelson, Bon Jovi e Bono (U2). Até a nossa Sandy tem vídeo cantando a pérola de Cohen!
No Brasil, ela chegou a ganhar uma versão em português chamada Aleluia (Hallelujah), que muda o significado de todos os versos. Em 2012, no Programa Raul Gil, a cantora Gabriela Rocha interpretou e popularizou essa adaptação, que substitui a frase sobre atirar em alguém por “Senhor, preciso do Teu olhar. Ouvir as batidas do Teu coração. Me esconder nos Teus braços, oh Pai”. Se Shrek não tinha sido o suficiente para colocar Leonard Cohen dentro da Igreja brasileira, essa versão terminou o serviço de transição do “despedaçado aleluia” para um gospel de fio a pavio.
Coincidentemente, em 2012, a música também estava bombando em programas de talento no exterior e Cohen precisou opinar sobre o que achava de tantas versões: “Houve algumas vezes em que outras pessoas disseram: por favor, podemos ter uma moratória sobre Hallelujah? Ela realmente precisa aparecer no final de cada drama e de cada Ídolos? Uma ou duas vezes senti que talvez devesse usar minha voz para silenciá-la, mas, pensando bem, não, estou muito feliz que a música esteja sendo cantada.”
Mesmo com 300 versões e a morte de Cohen, em 2016, muitos músicos continuam a imortalizar a canção. Um dos mais novos a entrar nesse grande clube de covers é Navarone Garcia, filho de Priscilla Presley, a viúva de Elvis. Ele gravou sua versão com apoio da banda brasileira Dr. Sin e a divulgou como seu primeiro trabalho solo no primeiro dia de dezembro, para marcar a chegada do final de ano.
“Eu cresci ouvindo essa música e sempre foi uma das minhas favoritas. Apesar de ela ter algumas referências bíblicas, penso que não é preciso ser religioso para apreciá-la”, contou em entrevista à Gazeta do Povo. “Essa versão é diferente porque os músicos trouxeram um pouquinho do jeitinho especial brasileiro.” Adequadamente, a interpretação em inglês de Navarone não incluiu o verso que fala de atirar em alguém.