Quantas vezes você já ouviu alguém pedindo o boicote de um artista por seu posicionamento político? Até dá para compreender nos casos em que as visões do astro impregnam a maior parte de sua produção artística. Mas será que isso é válido quando uma coisa não se mistura de maneira tão gritante à outra? Esse é o caso do guitarrista Eric Clapton, de 78 anos, que foi cancelado após criticar as vacinas contra a Covid-19 em uma carta enviada a um amigo, que acabou divulgada no aplicativo de mensagens Telegram, em 2021.
O músico britânico tomou uma dose da vacina Oxford/AstraZeneca e relatou que teve uma reação negativa. “Minhas mãos e pés estavam congelados, dormentes ou queimando, e praticamente inúteis por duas semanas, eu temi nunca mais tocar (sofro de neuropatia periférica e nunca deveria ter chegado perto da agulha)”, escreveu. Até aí, tudo bem, afinal ele estava falando de sua experiência pessoal. O tal do cancelamento, que lhe rendeu a alcunha permanente de “antivax”, só colou de vez no começo do ano seguinte, quando falou que as pessoas vacinadas sofreram "hipnose em massa".
Clapton soltou a bravata em uma entrevista amplamente divulgada no YouTube – a pesquisa citada por ele na ocasião acabou refutada por autoridades médicas de instituições como a Universidade de St. Andrews (Reino Unido) e a Universidade de Brighton (Inglaterra). E vale lembrar que pessoas com o status de lenda, como é o caso, costumam gerar um burburinho quando proferem algo controverso em um bate-papo. Mas, honestamente, quem é que realmente se importa ou se baseia nas opiniões de um guitarrista sobre a área de saúde?
O melhor é deixar isso tudo de lado e falar sobre algo que ele domina: a música. Na ativa desde 1962, Clapton já provou inúmeras vezes que é um mestre das seis cordas. Integrou bandas icônicas como The Yardbirds e Cream, além de tocar com músicos tão importantes quanto Jimi Hendrix, George Harrison, Duane Allman e Pete Townshend, para citar alguns. Sua carreira solo também não é nada fraca, condecorada com 18 prêmios Grammy por gravações como Layla, Change the World e a emocionante Tears In Heaven, feita para o filho de quatro anos, que morreu após cair do 53º andar do apartamento de um amigo de sua mãe.
Ideia de aposentadoria aposentada
Com histórias de sobra para contar por meio de seu instrumento, Clapton deixou muitos fãs tristes quando cogitou seriamente se aposentar em 2018, algo que ameaçava há pelo menos quatro anos. “O que me preocupa agora é estar na casa dos 70 anos e não ser capaz de ser proficiente. Estou ficando surdo, com um zumbido insistente, e minhas mãos mal funcionam”, disse Clapton em entrevista à BBC Radio 2 naquela época.
O diagnóstico de neuropatia periférica, uma doença que pode atingir nervos motores e sensoriais, também não oferecia um prognóstico positivo para sua carreira. O que ninguém esperava era que, assim que a pandemia acabasse, Clapton retomaria uma extensa agenda de shows. No próximo mês de setembro, ele tocará em Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo – suas primeiras apresentações no país em 13 anos – e alguns setores já estão esgotados.
Se os problemas de saúde e relações públicas de Eric Clapton ainda parecem preocupantes, basta dar uma rápida ouvida em suas músicas e apresentações mais recentes para esquecer disso. Na atual turnê, ele abre os trabalhos com Blue Rainbow, um belíssimo instrumental feito em homenagem a Jeff Beck, outro mestre da guitarra, falecido em janeiro do ano passado. O slowhand (mão lenta), apelido irônico dado por um amigo que o achava rápido demais, mostra na composição que ainda tem muito sentimento para liberar quando entra em contato com as seis cordas.
Já outras canções recentes, como Pompous Fool, Heart of a Child, This Has Gotta Stop e The Rebels (as últimas duas gravadas em parceria com o cantor Van Morrison, também perseguido por questionar decisões da área da saúde durante a pandemia), revelam seu lado mais politizado, irritado principalmente com a cultura de cancelamento e a liberdade de expressão asfixiada em redes sociais e meios de comunicação. “Para onde foram todos os rebeldes? Escondidos atrás de telas de computador”, pergunta e responde em uma dessas canções. Esses versos também são um reflexo do atual momento de Clapton: com 78 anos e uma carreira consolidada, para que ficar calado e falar somente o que é esperado por todos?
Um Deus que falha
Para quem acha que as composições acima indicam um Eric Clapton muito falastrão e merecedor de algum nível de patrulha, sua música mais nova, Voice of a Child, deve surpreender. Lançada há um mês, ela aborda o conflito entre Israel e Hamas sem usar uma única palavra, algo possível graças à sensibilidade dele na guitarra e uma apresentação de fotos mostrando crianças feridas e a destruição causada pela guerra.
Com esse posicionamento, mais voltado para a Palestina, Clapton até limpou um pouco de sua barra com os fãs mais progressistas que haviam se afastado de sua obra. Em 17 de janeiro, o músico lançará para alguns países (o Brasil ficará de fora disso) um vídeo sob demanda que terá seu valor revertido em doações para crianças na faixa de Gaza. Em trechos divulgados do show, como uma cover de Give Me Love (Give Me Peace on Earth), de George Harrison, Eric Clapton usa uma guitarra Stratocaster com o desenho da bandeira palestina, reforçando sua visão.
Independentemente de sua opinião política, que jamais agradará a todos, Clapton continua a criar boas composições e a tocar guitarra como poucos. Isso o torna praticamente “incancelável” para quem gosta de música acima de tudo. Ele pode até ser chamado de Deus, alcunha que carrega desde meados dos anos 60, quando a pichação “Clapton Is God” surgiu num muro de Londres, mas não passa de uma pessoa normal e falha. Uma pessoa normal e falha que toca mais guitarra que o resto da humanidade somada. Apenas isso.
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