“Demolidor” já tinha um rico histórico de episódios de super heroísmo e vigilantismo nos quadrinhos para servir de inspiração. A cena de abertura do primeiro episódio de “Jessica Jones” saiu direto do primeiro volume de “Alias”, um quadrinho da Marvel só para adultos – em que Jessica arremessa, através de uma janela fechada, um cliente insatisfeito com os resultados de sua investigação, depois o lembra que ele ainda não pagou a conta. E “Punho de Ferro”, que irá ao ar em 2017, tem as artes marciais místicas como base.
Já “Luke Cage” não tem esses luxos de influência. A estreia do personagem na década de 1970 era puro Blaxploitation, só que com super poderes. A Marvel não iria dar uma série para o cara que diz “Quem vai vir tentar me f-----? Eu sou o negão mais sinistro que tem”, que é uma frase citada direto da boca de Cage no primeiro volume de “Alias”, escrito por Brian Michael Bendis. E a versão censura 13 anos de Cage que aparece atualmente nos quadrinhos da Marvel não poderia aproveitar as vantagens que a maior liberdade televisiva da Netflix oferece.
A Marvel e a Netflix teriam que criar algo novo para ele. O que elas conseguiram fazer com a primeira adaptação em “live-action” de Luke Cage foi criar a melhor interpretação do personagem – parte de um campo pequeno de super-heróis negros importantes na cultura dos quadrinhos.
O básico das suas origens já está lá. Luke Cage é um homem negro à prova de balas (como isso aconteceu exatamente, o público descobre mais tarde na temporada). Mas não há nenhum “herói de aluguel” para salvar o dia e depois cobrar a conta, como havia nos quadrinhos. “Luke Cage” nos oferece um herói que sente que a coisa mais corajosa que pode fazer (pelo menos no começo) é ficar nas sombras. Ele não se esconde por trás de uma máscara com chifres à noite, que nem o Demolidor, para poder tocar a vida normalmente durante o dia depois que o sol nascer. Cage, interpretado com muito carisma por Mike Colter, está ciente que ele tem poder para derrubar os responsáveis pelos problemas em sua cidade, como Cottonmouth (Mahershala Ali), um gângster requintado, e a corrupta Mariah Dillard (Alfre Woodard), mas não sem talvez sacrificar aqueles que lhes são próximos, que, como ele logo aprende, não são tão invulneráveis quanto ele mesmo.
Assim, quando “Luke Cage” começa, conhecemos uma homem inocente sendo preso por um crime que não cometeu. Cage foge e leva consigo os superpoderes de invulnerabilidade e super força que lhe foram concedidos, contra a sua vontade, após experimentos ilegais. Ele está determinado a jamais voltar para a cadeia, e nós veremos o mundo que ele constrói para si, um mundo que representa algo jamais visto até agora no universo da Marvel. Para colocarmos em termos simples, é um mundo que é... negro.
Sim, “Luke Cage” é a série mais negra que a Marvel já fez. De longe. Herói negro. Par romântico negro. Vilões negros. Cidade com população negra. A própria trilha sonora também já é praticamente outro personagem negro na série (ela é composta por Ali Shaheed Muhammad, do grupo de hip-hop A Tribe Called Quest, junto com Adrian Younge). Há cenas de conversas de barbearia (onde Cage trabalha), em que o dono defende a inclusão de dois italianos numa lista quase só de negros ilustres, que inclui Muhammad Ali e Nelson Mandela, que ele atenderia de graça (e, sim, o executivo de basquete Pat Riley consta entre essas inclusões), há o uso da palavra “nigger” (alguns a usam de forma casual, enquanto outros apontam rapidamente que prefeririam não usá-la absolutamente) e, como veremos ao longo do seu casinho com Jessica Jones, Luke Cage é um belo conquistador. Volta e meia ele recebe convites para “ir tomar um café”, apesar de ser só o funcionário que varre cabelo do chão da barbearia – um lembrete, ao mesmo tempo frio e bem-humorado, de que é assim que é com alguns de nós.
Pressão
“Luke Cage” não se pretende um movimento, como afirma o produtor e roteirista Cheo Hodari Coker, mas é um momento especial nessa onda de séries inspiradas por quadrinhos. Cage não é o primeiro super-herói negro no universo de filmes e séries da Marvel. Já tivemos o Máquina de Combate e o Falcão – que, porém, por mais legais que sejam, são só coadjuvantes que não terão filmes próprios. O Pantera Negra (Chadwick Boseman) enfim chegou na Marvel com “Capitão América: Guerra Civil”, mas seu próprio filme solo não deverá sair até 2018.
Toda essa pressão não fez mal nenhum ao seriado. Na verdade, os produtores, roteiristas e atores parecem estar cientes de que fazem parte de algo que nunca foi feito antes pela Marvel e deram tudo que tinham para fazer da série algo espetacular. E foi um sucesso.
Colter tem carisma, mas sem ostentação – isso transparece até quando Cage é obrigado a manter a coisas mais na calada, seja se escondendo ou brigando. Mesmo sendo fuzilado e arremessando os bandidos das janelas, ele parece estar se contendo, como quem diz “vocês ainda não estão preparados para Luke Cage a 100%”.
Simone Missick, como Misty Knight, não tem a mesma persona de super-heroína que a sua versão nos quadrinhos (pelo menos, não até agora), mas brilha como um personagem que tem a tarefa árdua de ser policial e negra numa cultura que não confia na polícia e onde caguetas não têm vez. Ela é atraída por Cage, como tantas outras a princípio, mas se obriga a não se deixar cair nos seus encantos quando ele aparece em lugares onde não deveria estar. Cage e Misty têm o mesmo vilão na mira (Cottonmouth), mas acreditam em métodos diferentes quando o assunto é prender bandidos.
Alma da cidade
O Cottonmouth de Ali é um filho do potencial desperdiçado, que foi parar cedo no mundo do crime organizado e uma hora se dá conta de que está preso nele. Mas, se é para ficar nesse mundo, ele quer estar no topo. Sua colaboração oculta com sua prima Mariah (Woodard) traz à tona a questão: Até onde é possível ir para salvar a alma da sua cidade? Seu inimigo em comum é a ameaça da gentrificação e o que isso poderia significar para os futuros interesses do Harlem. Mariah quer que o Harlem continue negro e chegou a usar parte do dinheiro sujo de Cottonmouth para isso, enquanto Cottonmouth quer comandar um império do crime, junto com sua boate de luxo (que fornece algumas apresentações musicais incríveis de figuras como Raphael Saadiq, Faith Evans e outros).
E aí temos o simbolismo. Quanto chega a hora de Luke parar de se esconder e se tornar um herói, a discrição ainda é sua maior prioridade. Sua máscara preferida? Um moletom com capuz, do qual muitas vezes vemos balas ricochetearem. É impossível não lembrar de Trayvon Martin e outros que podem ter morrido por sequer terem a chance de perceber que um acessório de vestuário fazia deles uma ameaça. O simbolismo está lá para todo mundo ver, mas não precisa de pregação. Assim como a injustiça na vida real, às vezes palavras não são necessárias.
“Luke Cage” também passa no teste de autenticidade da Marvel, unindo os melhores elementos do personagem, modernizando a história e fazendo com que ela seja relevante não só para os fãs, mas também para o público em geral que não é especialista em quadrinhos. Quando o assunto são os filmes da Marvel e seus seriados na Netflix, as duas companhias ainda não deram nenhuma bola fora. “Luke Cage” não é diferente, e é o melhor seriado da Marvel até o momento.
Dada a chance de dar vida a um dos heróis negros mais conhecidos que existem, a Marvel e a Netflix produziram algo que é inegável e impecavelmente negro e maravilhoso.
*David Betancourt escreve sobre todos os aspectos da cultura de quadrinhos para o blog Comic Riffs do Washington Post.