Obra de 1613 de Miguel de Cervantes, “Novelas Exemplares” traz até história sobre cachorros falantes| Foto: Jesús Gabán/Penguin-Companhia
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"Caro leitor, de jeito nenhum adianta procurar pelo em ovo nestas novelas que te ofereço, porque elas não têm cabelo, nem barba, nem bigode, nem coisa parecida.” É assim que Miguel de Cervantes advertia quem comprava sua obra, Novelas Exemplares, publicada em 1613. “Os galanteios amorosos que acharás em algumas são tão puros e tão medidos pela razão e pela doutrina cristã que não poderão levar a maus pensamentos o descuidado ou cuidadoso que as ler”, afirmou no prólogo, que é reproduzido em uma caprichada edição da obra agora disponível no Brasil.

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Lançado pela Penguin-Companhia há poucos dias, o livro compila doze histórias escritas por Cervantes entre a publicação da primeira e a segunda parte de Dom Quixote de la Mancha, obra basilar da literatura mundial. O escritor castelhano tinha como missão oferecer “honestíssimo entretenimento” por meio da novela, narrativa literária que é marcada por sua extensão maior do que um conto e menor do que um romance. 

Para quem leu há tempos as duas partes da obra sobre o engenhoso fidalgo, Novelas Exemplares será um agradável retorno à magistral linguagem de Cervantes. O seu senso de humor e de percepção da sociedade espanhola estão presentes em todas as histórias. Além disso, há dezenas de discussões valiosas sobre honra que continuam importantes 411 anos depois e ainda podem trazer algo para se ocupar a cabeça. 

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Lendo A Novela da Ciganinha, pórtico da publicação, o leitor é impactado por todas essas qualidades. A história acompanha Preciosa, uma cigana de 15 anos que é sábia, de bom caráter, bela e extremamente talentosa na arte de cantar versinhos. Seu caminho se cruza com o de um nobre que se apaixona para ela. Mas, para provar seu amor, ele precisará abdicar de seus direitos e adotar o estilo de vida nômade de Preciosa. “Eu, senhor cavaleiro, embora seja cigana pobre e humildemente nascida, tenho um certo espiritozinho maravilhoso aqui dentro, que me leva a grandes coisas”, afirma a jovem ao ser cortejada e fazer sua proposta, que é aceita pelo pretendente perdidamente enamorado. 

É a partir desse contexto que Cervantes faz provocações sobre o amor próprio, o veneno que o ciúme é para a alma, e como certos valores cristãos podem vir de berço. Há espaço para o autor expor sua proficiência na redação de poemas, que são apresentados em português e castelhano na nova edição – preservando a sonoridade dos versos originais no papel. 

Pícaros sindicalizados e cães racionais  

Novelas Exemplares apresenta personagens tão interessantes quanto a ciganinha Preciosa ou até mesmo Dom Quixote. Esse é o caso de Rinconete e Cortadillo, dois trapaceiros que viram amigos ao conversar sobre suas histórias de roubos e enganações. A dupla une forças e acaba chamando a atenção de uma “congregação” de ladrões em Sevilha. A partir desse ponto, os pícaros precisam se adaptar a um monte de regras cômicas para atender ao líder do sindicato, Monipodio. 

Já Novela e colóquio que houve entre Cipião e Berganza apresenta dois cães que aprendem a falar e discutem assuntos tão diversos quanto ganância, honestidade, bruxaria e ciganagem. O humor que está na ideia de dois animais serem mais racionais do que muitos humanos reforça o convite à leitura do tomo. 

O grande êxito de Cervantes nessa reunião de novelas é conseguir unir diferentes gêneros literários de sua época. Bastante inspirado na literatura italiana, ele oferece histórias que mesclam narrativas sentimentais, pastoris e picarescas. “Se o leitor é convidado ao entretenimento, o escritor, por outro lado, parece desfrutar da arte da composição como se a escrita fosse uma atividade tão prazerosa quanto a leitura”, aponta Maria Augusta da Costa Vieira, professora de literatura espanhola da Universidade de São Paulo, que assina um dos apêndices da edição publicada pela Penguin-Companhia.  

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Para quem é apaixonado por Quixote ou até mesmo pela literatura clássica, Novelas Exemplares é leitura sem erro. O cuidado de Cervantes com o texto, muito bem traduzido ao português, deixa bastante claro o porquê de ele ser posto ao lado de gigantes da literatura como William Shakespeare, Dante Alighieri, Johann Wolfgang von Goethe e Luís de Camões.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]