Na longa história da humanidade, o que não falta são casos de falsos profetas que se aproveitaram da fé alheia para arranjar algum tipo de benefício próprio. Charles Manson, Jim Jones e Marshall Applewhite estão entre os nomes mais célebres internacionalmente. E o Brasil tem um desses párias para chamar de seu: o médium João de Deus. Condenado a 489 anos de prisão por crimes sexuais, ele é o foco em João sem Deus – A Queda de Abadiânia, minissérie produzida pelo Canal Brasil e disponível no streaming Globoplay.
Para ilustrar a derrocada do médium, interpretado pelo ator Marco Nanini, os três episódios se concentram nos poucos dias que separam a primeira leva de denúncias exibidas no programa Conversa com Bial do momento em que ele se entrega para a polícia, em dezembro de 2018. Outra decisão tomada pela equipe criativa do seriado, encabeçada pela diretora Marina Person, foi a de criar duas personagens, as irmãs Carmen e Cecília. Ambas são abusadas por João, porém suas reações são completamente diferentes. Uma delas vira uma assistente fiel e a outra fica traumatizada, trazendo um pouco da dualidade que uma vítima pode sentir em um caso como esse. Há também personagens criados para ilustrar o trabalho de funcionários importantes na Casa Dom Inácio de Loyola, local em que o médium realizava seus atendimentos, na pequena cidade de Abadiânia (GO).
Mesmo com essas liberdades no roteiro, uma maneira esperta de evitar entraves legais na hora de contar a história, muitas características dos personagens e ambientes são baseadas no vasto material que foi noticiado e publicado sobre o escândalo. Caso João sem Deus deixe o espectador desejando por mais informações, uma leitura do livro A Casa, do jornalista Chico Felitti, pode ser uma boa pedida. Também há na Netflix a série documental João de Deus – Cura e Crime, que esmiúça os fatos em quatro episódios.
Fé cega, faca amolada
Como o suposto médium teria abusado de centenas de mulheres ao longo de sua trajetória na Casa, não faltam relatos para reforçar e basear a monstruosidade de seus atos, muito bem traduzida para a tela por Nanini. Ele incorpora a frieza de João com suas vítimas, sejam menores de idade de seu convívio próximo, sejam mulheres desesperadas nas tais “cirurgias espirituais”. Mesmo apontados diversas vezes como charlatanices, os procedimentos convenceram personalidades como Xuxa, os presidentes Lula e Dilma, o ministro do STF Luís Roberto Barroso e até a apresentadora americana Oprah Winfrey, revelando como João era carismático e abusava da fé cega até de pessoas tidas como esclarecidas.
Para trazer um tom ainda mais forte de realidade na produção, logo de cara são alternadas as dramatizações com cenas reais, mostrando como o local ficava lotado, além da euforia das pessoas quando chegava o momento de serem atendidas por João de Deus. O número surpreendente de vítimas também vira um elemento para colocar os pés da minissérie no chão e sempre lembrar ao espectador de que aquela é uma história verdadeira. Conforme o roteiro avança e as denúncias crescem, um contador aparece na tela e atualiza o total de acusações feitas por mulheres contra o médium.
É importante ressaltar que há uma certa exaltação dos programas da Rede Globo que levaram ao ar as denúncias contra João de Deus. Não que fosse possível escapar disso, afinal, a atuação de uma jornalista ligada ao Conversa com Bial foi crucial para mudar a imagem do médium querido, revelando sua verdadeira faceta de monstro. Que esse tenha sido o último pilantra a ejacular na mão de uma mulher e dizer que aquele era o ectoplasma que iria sarar sua doença.
Seja pela criação de personagens convincentes ou pela atuação sensacional de Nanini, João sem Deus – A Queda de Abadiânia é imperdível para quem tem curiosidade sobre o caso ou gosta de produções com pegada true crime. Os três episódios, que funcionam como um filme, também servem como um conto preventivo para quem passa por momentos de dificuldade e busca resposta em qualquer oferta espiritual que pinta pela frente.
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