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Uma das melhores minisséries brasileiras de 2023 só chegou ao streaming com o ano acabando. Trata-se de A Mão do Eurico, produção original do Globoplay, que em cinco episódios destrincha a jornada de Eurico Miranda (1944-2019), dirigente de futebol que começou a participar da vida política do Vasco da Gama ainda na década de 1960 e foi se apossando do clube até se tornar uma espécie de imperador. A série dirigida por Rafael Pirrho se vale de muito material de arquivo e da extrema simpatia dos familiares diretos (especialmente a viúva e os quatro filhos) para narrar uma história que por vezes só parece crível porque a vivenciamos.
Estão lá todas as facetas de Eurico, a começar pelo torcedor obcecado pelo time cruz-maltino, porém sem discernimento para perceber quando suas ações eram prejudiciais à instituição – se o Vasco virou um time odiado e, depois, aproximou-se da irrelevância com seus quatro rebaixamentos para a segunda divisão do futebol brasileiro, aí teve a mão do Eurico. O torcedor obcecado leva ao dirigente bravateiro, que conseguiu vitórias esportivas repatriando Roberto Dinamite no começo dos anos 1980, contratando Edmundo e Romário na década seguinte, mas que também fez muita confusão nos bastidores, comportamento que ele reproduziu quando se tornou deputado federal.
O aspecto afrontoso do dirigente bravateiro é o que rende as melhores histórias presentes na minissérie. No quarto episódio, é detalhado como Eurico Miranda estampou o logo do SBT para provocar a Globo numa final de campeonato. E ele fez isso sem acordo algum com a emissora de Silvio Santos, que chegou a temer retaliações da coirmã. Vingar-se da emissora carioca era um de seus passatempos favoritos, num momento em que sua equipe ganhava muitos títulos e vivia na crista da onda.
O respeito voltou e passou
Pena que o caldo entornou na sequência. Uma crise financeira nos primeiros anos deste milênio abalou o relacionamento dos torcedores com o então presidente Eurico. Possíveis desvios de renda de jogos para financiar suas campanhas políticas vieram à tona, dando início também à derrocada física do dirigente, que perdeu o comando do clube para o então desafeto Roberto Dinamite. Mas esse não foi o fim de sua história. Mesmo sem o vigor de antes, Eurico retomou a presidência do Vasco e emplacou mais duas frases de efeito: “o respeito voltou” e “se cairmos, eu vou para a Sibéria”. O rebaixamento veio e ele seguiu dando expediente nas dependências calorentas de São Januário.
Alguns detalhes da série valem ser mencionados, como o de que Eurico só conseguia se distrair e não pensar no clube montando quebra-cabeças em sua casa. Outra: possivelmente foi Romário quem deu o primeiro charuto para Eurico, que havia abandonado o cigarro, mas voltou a pitar loucamente ao pegar gosto pelos “cubanos”, que também reforçavam sua figura poderosa (a um passo da mafiosa). O ex-atacante e hoje senador pelo Rio de Janeiro se arrepende de ter apresentado o charuto ao dirigente, cujos pulmões foram atacados por um câncer, que depois se alastrou para o cérebro e o matou.
Como afirma no quinto capítulo o jornalista Juca Kfouri – que está em todos os produtos documentais do nosso futebol, assim como o produtor Nelson Motta está em todos sobre a MPB –, Eurico fez muito mal ao Vasco. Não só ao Vasco, como ao futebol como um todo. Sua temporada trabalhando dentro da CBF foi deletéria, assim como suas gestões como parlamentar para inviabilizar a Lei Pelé. Por muito tempo, Eurico manteve nosso esporte número 1 com um pé na várzea, incentivando comportamentos imorais a atrasando processos profissionalizantes, que acabaram por falir clubes grandes, hoje renascidos como sociedades anônimas. A mão de Eurico acena para o passado, um passado que precisa ficar cada vez mais distante, ainda que isso nos tire os causos saborosos que figuras desse naipe proporcionam.