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Há 60 anos, durante o mês de abril, iniciavam-se as gravações de Moscou contra 007 (no original, From Russia with Love), um dos grandes clássicos do cinema, que trouxe novas dimensões aos filmes de espionagem. Baseado no livro homônimo de Ian Fleming, o longa traz o agente secreto britânico James Bond em uma missão para impedir um plano da inteligência soviética que ameaça o mundo. A produção deste segundo filme da franquia, que estreou em outubro do mesmo ano, foi responsável por impulsionar a carreira do ator Sean Connery, mais tarde imortalizado em obras-primas como O Nome da Rosa e Os Intocáveis.
Muito além de uma história ficcional de espiões, a película sexagenária foi uma das primeiras grandes produções cinematográficas – ao lado de Dr. Fantástico e Intriga Internacional – a fazer sucesso internacionalmente e escancarar a rivalidade entre a União Soviética e o mundo ocidental durante a Guerra Fria. O período entre 1947 e 1991 foi marcado por tensões geopolíticas entre as duas regiões, divididas principalmente pelo comunismo e seus horrores, com uma ameaça que pairava sobre todo o mundo.
Na adaptação da obra de Fleming às telonas, Bond enfrenta em diversas ocasiões a SPECTRE, uma organização criminosa formada por membros de grupos como a máfia e a Gestapo, mas sua intenção original não era essa. No filme de 1963, a ideia original do autor era que os inimigos do agente 007 fossem da SMERSH, uma agência do Exército Vermelho responsável por caçar “elementos antissoviéticos” durante a existência da URSS. A mudança no filme ocorreu justamente para evitar que a delicada relação entre o bloco e o Reino Unido fosse ainda mais fragilizada, mas o escritor sempre teve em mente a sua preocupação com o comunismo.
Moscou contra 007, que em Portugal ganhou o diplomático título 007 – Ordem para Matar, pode ser assistido na plataforma Prime Video ou alugado via Apple TV+ e Google Play. Vale a pena prestar atenção na cena em que Bond volta para o seu quarto após um assassinato e começa a tirar a roupa para tomar banho. Ao ouvir um barulho suspeito, ele pega a arma, sai do banheiro e descobre que os sons eram da sexy Tatiana Romanova aterrissando em sua cama. Segundo o produtor Michael G. Wilson, essa é a cena que todo ator pleiteando ser o novo espião precisa interpretar para ganhar o papel. “Quem consegue se dar bem nesse teste é a escolha certa para ser Bond. Essa cena é dureza”, diz o produtor. Há registros na internet de James Brolin e Sam Neill encarando a cena. Eles não conseguiram o papel.
Fortes, inteligentes e astutos
O bloco soviético chegou ao fim na década de 1990, mas a Rússia atual parece ter regredido muito em seu sistema “capitalista de camaradas”, que beneficia apenas aqueles próximos ao governo de Vladimir Putin (vale lembrar que ele próprio foi um agente secreto da KGB até 1991). Prisão de oponentes políticos e ativistas, censura da imprensa e perseguição de minorias são apenas alguns exemplos das violações cometidas pelo governo russo deste turno, indicando que parte da ameaça enfrentada por Bond ainda gera dor de cabeça. Isso sem falar na invasão da Ucrânia...
Apesar de seus enormes e antigos problemas, é importante reconhecer que a Rússia tem uma rica história, que vai muito além da imagem estereotipada da espionagem e do comunismo. A celebração dos 60 anos de Moscou contra 007 pode servir como um lembrete da complexidade e diversidade da região, além de incentivar conversas sobre a importância cultural do país. Com nomes como Ígor Stravinski, Anton Tchekhov, Mikhail Baryshnikov e Andrei Tarkovski fica impossível dizer que a música, a literatura, a dança e o cinema russos não influenciaram a produção artística contemporânea ao redor do globo. Mesmo sendo um grande crítico, até Ian Fleming enxergava o potencial do país, isso desde a década de 60.
“Sua atitude geral em relação à Rússia era muito respeitosa”, disse James Fleming, sobrinho do criador de 007 e autor do livro intitulado Bond Behind the Iron Curtain (Bond por trás da cortina de ferro), em entrevista comemorativa dos 60 anos do filme ao jornal The Telegraph. “Ele via os russos como fortes, inteligentes, astutos – oponentes dignos. Achava apenas que era da natureza da relação com países ocidentais que a Rússia nem sempre fosse vista como amiga.”