Ali na porta do apartamento de Harold Bloom, há mais de uma década, eu era um menino chegando ao cume do Everest. E, como sempre acontece nesses casos, uma vez alcançado o ponto mais alto só há um caminho: o de volta. Ele abriu a porta e me cumprimentou com a mão semimole – reflexo, quero crer, mais do que calor nova-iorquino do que de enfado. Dali a meia hora, minha vida teria mudado. Uma mudança que só fui perceber dez anos mais tarde.
Conheci Harold Bloom no auge da minha adolescência intelectualóide, quando eu acreditava debilmente que ler alguns clássicos me ajudaria a superar o trauma das orelhas de abano e finalmente conquistar aquela menina e que as pessoas realmente ambicionavam algo além de um salário seguro no fim do mês, fotos ao lado de monumentos famosos ao redor do mundo e uma velhice de tédio e indignação diante do telejornal.
Podem rir, porque eu mesmo rio hoje em dia, mas essa era apenas uma das premissas erradas sobre as quais construí minha vida: a de que todos queriam se tornar pessoas melhores. E que uma das formas para se alcançar isso era por meio dos livros.
Daí a importância de O Cânone Ocidental, primeiro livro de Bloom que li sem entender nada, mas afetando ter entendido tudo. Lembro-me de pagar caro pelo livro e de começar a devorá-lo ali mesmo no ônibus, exibindo a capa todo orgulhoso para os operários entediados. Mal sabia eu que estava a caminho não só do Bairro Alto, mas também de me tornar uma versão espinhenta a ainda mais tola de Hamlet, provocando carnificinas com minha pena afiada – a troco de nada.
“Viver é perigoso”, como repete à exaustão Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, e como escreviam as meninas nas agendas multicoloridas da minha juventude. Eu já tinha adentrado vários buritizais e participado de combates sangrentos no cerrado quando tive a oportunidade de conversar com Harold Bloom pela primeira vez, numa entrevista por telefone realizada uma década depois de ter lido O Cânone Ocidental e de me aventurar por todos os outros livros dele.
Quando disquei os últimos dos trezentos algarismos que compunham as ligações internacionais daquela época, senti algo em meu espírito ruir. Agucei os ouvidos. No caminho até o cume do Everest há sempre traiçoeiras avalanches. Àquela altura da vida, começava a desconfiar das premissas que me guiavam pelo faroeste da literatura brasileira. Mas avançava com teimosia por esse deserto – até porque me faltavam alternativas.
Bloom fez as vezes de Virgílio e me conduziu por todos os círculos do inferno editorial em não mais do que meia hora de conversa que me custaram mais do que ganhei com a entrevista – que, aliás, nenhuma publicação quis comprar. Ele falou de Stephen King e Harry Potter e ali eu já percebi no velho e gordo mestre o mesmo cansaço que antevia em minha vida cercada por livros, escritores e controvérsias vazias.
Estar fadado é uma escolha – outra frase que bem poderia estar em Grande Sertão: Veredas, mas é minha mesmo e me ocorreu agorinha. A conversa caminhava para o final quando um Bloom surpreendentemente generoso me convidou para um café ou chá ou limonada (acabou sendo água mesmo) em seu apartamento de verão em Nova York. Anotei o endereço certo de que jamais teria coragem para enfrentar os desfiladeiros de gelo e encher a boca de clichês para dizer que cheguei ao teto do mundo.
Mas acabei indo, numa tarde em que me vi obrigado a fazer A Escolha. Naquele remoto ano de 2006 eu era um jovem adulto já refletindo sobre minhas experiências de guerra nas trincheiras da literatura brasileira contemporânea. Havia dias em que, sofrendo de estresse pós-traumático ou coisa parecida, acordava no meio da noite e ficava encarando o teto, me sentindo culpado por aqueles que eu havia abatido com meu fuzil de adjetivos. Noutros, bem mais raros, celebrava meus acertos.
Era (e continua sendo) uma guerra minúscula e irrelevante, que cria heróis num dia para destruí-los noutro e que arrasa completamente o campo de batalha, deixando para trás um cenário de crateras estéreis e troncos chamuscados – e corpos, muitos corpos, a maioria jovem e cheia de premissas tão ou mais falsas do que as que eu carregava.
Cheguei à 13th Street e fiquei uns quinze minutos diante do predinho, naquele impasse de quem se sabe prestes a saltar de um precipício. Por fim, respirei fundo, me armei de meu melhor inglês possível e lá fui eu encontrar o famoso professor de Yale que dava aulas para um seletíssimo grupo de escolhidos.
Eu queria dizer que entrei menino e saí homem, mas acho que tenho senso de ridículo o bastante para não dizer uma coisa dessas.
Por algum mistério, eu e Bloom conversamos longamente sobre a imortalidade e sua irmã mais famosa, a morte. E, enquanto o professor falava da coisa em si, da possibilidade real que, no caso dele, se concretizaria 13 anos mais tarde, eu absorvia tudo como quem sente que aquela coisa moribunda dentro dele vai dar finalmente o derradeiro suspiro.
Hoje Harold Bloom está aqui ao meu lado na cama. Leio pela décima vez seu longo ensaio sobre Hamlet me lembrando da luz que entrava pela janela do discreto apartamento nova-iorquino naquela tarde de verão. Reconheço que estamos os dois mortos, embora um de nós ainda respire. Porque o homem de cabelos já rareando que alcançou aquele Everest há muito abandonou a carreira de alpinista cultural.
E atualmente se contenta em lembrar dos tolos sonhos de glória, admirando cá do conforto de minha varanda os jagunços do beletrismo se digladiando em conflitos que não fazem sentido – e nunca fizeram.