O cantor e compositor australiano Nick Cave, que lançou novo álbum com o The Bad Seeds| Foto: Divulgação
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Existe um movimento global contra Israel chamado BDS, iniciais de palavras que, traduzidas, formam a tríade: Boicote, Desinvestimento e Sanções. Participam alguns artistas, como Roger Waters, que volta e meia pressiona outros para que se recusem a fazer shows naquele país. Os que ousam desobedecê-lo, como Nick Cave anos atrás, são atacados de forma bastante agressiva, como fez o ex-Pink Floyd à época: “F*da-se, Nick Cave, seu idiota de m*rda”.

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Dias atrás, Nick, participando de um podcast, foi perguntado sobre a postura de Waters, respondendo achar “profundamente embaraçosa”. E concluiu: “Eu simplesmente não concordo com um boicote cultural geral”. Foi o que bastou para Waters voltar ao ataque, lendo um comentário ácido em perfis de rede social, com o mesmo ódio típico de intolerantes convictos de sua auto-imposta superioridade moral.

Porém este texto não é sobre o ódio de Waters, que já é tão público e notório que se tornou entediante falar sobre, como bem disse seu ex-parceiro de banda, David Gilmour, em entrevista recente. É sobre um possível remédio para quem padece em alguma medida do mesmo mal – e somos tantos, não? Nick Cave parece tê-lo encontrado e vem distribuindo em doses generosas nos últimos anos, seja em discos, escritos, entrevistas. O mais recente está em seu novo disco ao lado da fiel banda The Bad Seeds, Wild God.

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Mas não pense que encontrará aqui um remédio à la John Lennon e sua intragável Imagine. Já na primeira faixa, Song of the Lake, Cave canta que, se para cada mal debaixo de sol houver um remédio, seria preciso buscá-lo até ser encontrado, mas se não existir, então: “Não importa!” Como? Sim, é isso mesmo que você leu. A música termina com ele cantando: “Oh, minha querida, para onde vamos agora?/ Não importa, não importa/ E o que faremos agora?/ Ah, não importa, não importa”.

Esse “não importa”, que também significa um “deixe pra lá”, desarma e intriga. Para entendê-lo, é preciso escutar o disco, percebendo nele um chamado à conversão, primeiro no sentido de parar de alimentar a degradação reinante crendo que está tentando resolvê-la, como faz Waters, voltando-se para algo melhor, como Cave canta em Joy: “Em todo o mundo, eles gritam palavras más, gritam palavras raivosas/ Em todo o mundo, eles gritam suas palavras raivosas/ Sobre o fim do amor, mas as estrelas permanecem acima da terra/ Metáforas brilhantes e triunfantes do amor/ Metáforas brilhantes e triunfantes do amor/ Cegando a todos nós que nos importamos em ficar de pé e olhar além/ Que nos importamos em ficar de pé e olhar além e acima”.

Enlutado por dois filhos

É importante contextualizar o disco na biografia do compositor, que nos últimos dez anos perdeu dois filhos e expôs seu luto em suas obras com uma franqueza dolorosa de se acompanhar, como novamente aqui, em particular na música Final Rescue Attempt, que trata de quando sua esposa, que não conseguia conviver com o sofrimento dele, abandonou-o, tendo voltado oito meses depois, vendo-o pior ainda, mas dizendo: “Estou aqui”. Na música, que é uma declaração de amor para Susie, confessa: “Depois disso, nada mais doeu de verdade de novo”.

Essa dor permanece, porém, ainda que não como antes. Não são superadas ou enterradas, mas transfiguradas, como em O Wow O Wow (How Beautiful She Is), um tributo a Anita Lane, falecida em 2021, também compositora e musa de Nick nos anos 1970 e 1980, além de sua namorada por um bom tempo. Uma mensagem de voz de Anita encerra a música, que é serenamente alegre, leve, com Nick concluindo: “Posso confirmar que Deus realmente existe”. Eis o sentido final da conversão, daquele “não importa”.

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Ou seja, não se trata de procurar solução para os males do mundo nas coisas do mundo, nesta ou naquela ideologia, em alguma teoria, mas no que a tudo transcende, simbolizado pelo céu que permanece, as estrelas que brilham e na beleza do ser humano capaz de criar obras como Wild God, que termina com As the Waters Cover the Sea, convidando a um encontro com Ele: “Ao sair do túmulo/ Em seus trapos e suas feridas/ Na luz amarela que atravessa a janela, Ele traz/ Paz e boas novas para a terra/ Paz e boas novas para a terra/ E enquanto as águas cobrem o mar/ E enquanto você acorda e se volta para mim/ Paz e boas novas Ele trará/ Boas novas para todas as coisas”.

Nick Cave em sessão de gravação de seu novo disco, “Wild God”| Foto: Reprodução YouTube

Recentemente, em seu blog, Cave respondeu a um leitor que lhe perguntou se ele não temia estar “do lado errado da história”. Eis a resposta, que tem tudo a ver com o disco: “Os seres humanos são confusos e pode ser perigoso negar a nossa falibilidade em comum traçando linhas que nos separam e dividem. Lado certo? Lado errado? Principalmente, somos a bagunça que fica no meio, confusos em uma névoa de desconhecimento, atordoados pela vida e maravilhados por ela também, e ainda mais belos por isso.”

O disco é uma ode a essa beleza que não foge da confusão, nem se esconde da dor, do sofrimento, tampouco é sequestrada pela miséria da vida. Uma beleza que consola, purga nossos males, desarma nossos ódios e nos reaproxima uns dos outros. Até de Roger Waters? Até de Waters, ainda que ele não queira. Um dia, quem sabe, a ficha cai. Aí entenderá que todo seu ódio e orgulho apenas pioram a situação, nada resolvem e, no fim das contas, “não importa”.