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Epopeia portuguesa

Nos 500 anos de Camões, “Os Lusíadas” desafia nossa indigência intelectual

Maior obra de Luís de Camões se mantém instigante séculos depois de ser lançada
A maior obra de Luís de Camões se mantém instigante séculos depois de ser lançada (Foto: Reprodução internet)

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Qualquer um que ainda seja lembrado 500 anos depois de nascido merece ser melhor conhecido. É o caso de Luís de Camões, o aniversariante quinhentista deste 2024, seguindo vivo por meio de suas obras, sendo a maior delas – embora muitos prefiram sua poesia lírica, entre os quais me incluo – o poema épico Os Lusíadas, daqueles que muitos já ouviram falar, mas poucos leram de fato, sendo que, dentre estes, vários desistiram antes do fim, quando não logo no início.

É compreensível. A leitura da epopeia se tornou difícil mesmo, não apenas pela distância temporal que fez desconhecidos para a maioria dos leitores de hoje os eventos históricos portugueses contados em mais da metade da obra, tornando a leitura, para quem precisa ir atrás de tantas referências, hercúlea e enfadonha. Mas também pelos maus tratos que nossa língua vem sofrendo por décadas, criando um abismo de distância – que se aprofunda cada vez mais e talvez de forma intransponível – entre a linguagem culta e a coloquial, praticamente exigindo que a epopeia camoniana precise ser traduzida.

Uma prova suficiente dessa dificuldade está já no plano gramatical. Dê uma rápida mirada nos programas de cursos ou aulas sobre o poema disponíveis por aí e perceba como costumam sempre começar por dedicar um bom tempo e esforço à compreensão sintática apenas das duas primeiras estrofes/estâncias. E dificuldade semelhante se repete em várias partes do poema, transformando a leitura em algo realmente hercúleo para o leitor médio atual – no que me dou conta de que a referência a Hércules talvez nem seja mais reconhecida e compreendida de imediato por este leitor. Pois é.

Some-se a isso o maior problema com a leitura de poesia hoje em dia (um hoje que já tem muitos ontens iguais e nada sugere que mudará nos amanhãs que virão), que é a inépcia generalizada para conseguir escutá-la. Sim, escutar, ouvir. A surdez poética se tornou a norma hoje em dia, fazendo com que qualquer um que aponte obviedades como o uso dos sons de encontros de consoantes, vogais, rimas, etc, para criar imagens poéticas, pareça um sábio doutor com anos e anos de formação na área. Mas precisa de tanto assim? Não, não mesmo.

Enfim, não são poucas as dificuldades que um leitor amador, iniciante ou mediano, enfrentará para tentar ler Os Lusíadas hoje, sem esquecer de outros aspectos presentes na obra e importantes para sua compreensão, como a dimensão simbólica-astrológica, as referências mitológicas e mesmo as cristãs, já não tão óbvias para muitos. Mas a boa notícia é que tem solução, que não é tão complicada de se conseguir, e o que se ganha resolvendo esses problemas é muito mais do que se imagina.

Abra os ouvidos

O drama da escuta realmente não exige muito para se resolver. Basta ouvir atentamente a declamação do poema, ao menos de partes dele. Existem várias por aí, basta pesquisar. Dê preferência às declamadas por outros poetas, costumam fazer isso melhor. Com o hábito de escutar e até tentar declamar uns versos, o ouvido se abrirá naturalmente. Já os demais obstáculos, como o desconhecimento histórico e as referências mitológicas, podem ser razoavelmente contornados ou resolvidos com uma boa edição da obra recheada de notas de rodapé e/ou materiais de apoio, como a da editora portuguesa Porto, que possui uma para ser usada por professores em sala de aula, com muitos recursos que descomplicam a obra.

Se o leitor chegou até aqui é porque realmente deseja ler Os Lusíadas, apesar dessas dificuldades. Os de vã curiosidade, creio, já desistiram, não só da obra, como também deste singelo texto ali pelo segundo ou terceiro parágrafos. A pergunta que fica aos leitores sérios é esta mesmo que sei que você está se fazendo, ainda que evite dizer em voz alta porque, enfim, seria um clássico dito obrigatório e quem somos nós para sustentar uma resposta sincera à pergunta afetada, por farisaica: “como assim você está perguntando se vale a pena tanto esforço para ler um poema?”

Deixemos de lado o cânone, a tradição, o que se deve ler porque sim. A leitura vale independentemente disso. Esses esforços iniciais para se conseguir ler o poema podem ser considerados como andaimes em torno de uma catedral, necessários para sua imaginação construí-la, mas que em algum momento parecerão ter sido retirados, com o esforço se tornando indolor e a experiência estética acontecendo com uma apreensão intuitiva e afetiva, luminosa e encantadora, que dificilmente se consegue reproduzir ou descrever em palavras, sendo mais uma espécie de epifania.

No próprio Os Lusíadas temos bom exemplo do que é essa experiência de contemplação amorosa, quando Vasco da Gama, depois de conseguir chegar à Índia e receber o prêmio de Vênus na Ilha dos Amores, é levado pela deusa ao topo de um monte no qual lhe é revelada a “máquina do mundo”, por meio da descrição do que é feita a terra e os céus, a região elemental e celestial, desenhando com palavras um cosmos completo e perfeito com o Empíreo, o “lugar” de Deus, no mais alto de tudo e abarcando a todos. O que deve fazer o leitor a não ser ver o que Vasco vê e se deixar encantar com o que Vasco contempla?

Séculos depois, nosso Carlos Drummond de Andrade, no que muitos consideram o maior poema brasileiro, compôs A Máquina do Mundo, cuja referência agora é óbvia ao leitor que antes não sabia. No poema, o eu lírico é convidado a ter o privilégio de ver o que Vasco viu, mas recua, receoso, preguiçoso. Eis o homem moderno, contemporâneo, nós, enfim, que não sabemos, porque nunca aprendemos, como abrir o “peito para agasalhá-lo”, agasalhar em resposta a esse “apelo assim maravilhoso”, como se canta num dos versos drummondianos. Os esforços acima citados, e exigidos para a leitura, não são mais do que movimentos de abertura do coração para que nele o valor mais alto que há n’Os Lusíadas se alevante, cessando tudo que nossa indigência intelectual, que enfraquece nossa vontade, canta.

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