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Chegou ao Telecine

O belo “Vidas Passadas” reforça que dor de amor só com amor se cura

Cena de "Vidas Passadas", que acaba de chegar ao Telecine
Os personagens Nora e Hae Sung passeiam por Nova York em cena de "Vidas Passadas" (Foto: Divulgação Amazon)

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A safra de filmes do Oscar 2024 – a melhor em muito tempo – está agora toda disponível nos serviços de streaming. Talvez o último que faltava fosse o belo Vidas Passadas, que estreou esta semana no Telecine. Vale a pena assistir e é sobre o que escrevo hoje. A partir daqui, alerto o leitor de que virão spoilers, então, salvo se você for como eu, não sofrendo de spoilerfobia, sugiro ler somente depois de assistir.

À primeira impressão, Vidas Passadas parece uma típica comédia romântica, ainda que frustrada no fim. Há o quase casal protagonista, que desde a infância parece feito um para o outro, mas que, pelas circunstâncias e escolhas, nunca fica junto de fato. Pode ser muito mais do que isso para quem permanece recolhido na introspecção a que o filme conduz no fim, deixando-nos orvalhados de tristeza, meditando em nossa própria vida, naquilo que poderia ter sido e não foi, nos caminhos que não foram trilhados por termos escolhido outros. “Eu seria mais feliz hoje se…?”

Não apenas se vingasse amores que não vingaram, mas também por outras possibilidades de vida que não foram escolhidas e que teriam levado a viver outra história, a ser diferente de quem se é hoje. “Eu seria alguém melhor?” Dificilmente pensamos essas coisas quando a vida está nos trilhos, apenas fazemos quando descarrilhamos, o que torna fácil considerar qualquer outra opção como sendo possivelmente melhor do que a frustração do momento. Mas não é disso que se trata aqui, de uma comparação entre o que se é e se tem com o que não foi, mas poderia ter sido. É sobre quem você pode ser no presente. Para entender melhor, voltemos à história.

As escolhas dos personagens principais, que os fizeram não ficar juntos, não tinham a ver um com o outro, mas com outras coisas que queriam da vida. Nora queria seguir a carreira de escritora, Hae Sung a engenharia. Por isso ela não abandonou Nova York para voltar à Coreia do Sul, nem Hae Sung foi a Nova York quando era preciso, se quisesse realmente ficar com Nora, optando por ir à China aprender mandarim, necessário ao seu trabalho. Ambos queriam um ao outro, mas essas outras escolhas impediram que isso acontecesse.

Almas gêmeas?

Esses rumos divergentes já se revelam numa das primeiras cenas, deles crianças voltando para casa da escola. Há uma bifurcação, com Nora pegando uma escadaria colorida, enquanto Hae Sung seguiu por um caminho mais plano e cinzento. Simboliza perfeitamente o que será o futuro. Nora sairá da Coreia, aculturando-se primeiramente em Toronto, Canadá, depois nos EUA, e se tornando escritora. Hae Sung permaneceu onde estava, vivendo de acordo com a cultura de onde nasceu. Quando se reencontraram virtualmente 12 anos depois, graças às redes sociais e à tecnologia que permite uma aproximação capaz de estabelecer uma intimidade real, o afeto da infância foi mais do que recuperado, com a amizade se transformando rapidamente em algo mais. Neste momento, parece que estamos assistindo a uma típica história de “almas gêmeas”.

Entretanto, como toda relação amorosa de verdade, chega o momento em que o virtual exige a realidade da presença física. A distância, então, torna-se mais do que uma adversidade suportável, mas uma barreira que precisa ser transposta para que o relacionamento continue, aconteça de fato. Nora é quem percebeu isso com clareza, tomando a decisão de se afastar, já que ambos deixaram claro que não sairiam de onde estavam para ir onde o outro vivia. Nora poderia esperar um pouco mais? Hae Sung poderia “meter o louco” e ir a Nova York ficar com ela naquele momento? Poderiam, mas escolheram diferente.

Quando, 12 anos depois, Hae Sung enfim foi aos EUA, Nora estava casada, feliz e aparentemente bem resolvida em relação ao amigo da infância, ainda que ele parecesse nutrir esperança. Mas a presença dele desencavou nela a vida que não foi e, no fundo, desejava. Isso fica evidente na conclusão do filme, não apenas pelo seu choro, mas também por sua postura corporal nos minutos em que esperavam o Uber para Hae Sung ir embora.

Das melhores coisas no filme, aliás, é o quanto a comunicação entre os personagens se dá menos pelas palavras e mais pelos comportamentos, posturas corporais, expressões faciais. É como Vidas Passadas começa, inclusive, colocando o espectador na perspectiva de alguém que assiste aos três – Hae Sung, Nora e o marido – conversando num bar, perguntando-se com qual deles Nora estaria, pois poderia ser com qualquer um, pela sua expressão e postura. Mesmo nas cenas em que Hae Sung e Nora conversam virtualmente, o filme acontece menos no que se fala e mais como se olham, como estão sentados ou deitados diante das telas.

A redenção do esposo

Nos encontros pessoais, o olhar bondoso e embevecido de Hae Sung, combinado à postura tímida, mais parecendo um menino crescido vestindo roupas de homem, diz muito mais sobre sua tibieza, consumada ao final na distância que mantém de uma Nora que, por sua vez, mostra-se claramente “entregue” ali, indicando pela postura que não só não resistiria se ele tentasse beijá-la, como talvez até o desejava. Seu choro voltando para casa significa o transbordar de tristeza pela vida que gostaria de ter tido ao lado de Hae Sung, mas não teve. Algo que ela acreditava que tinha superado há tempos, quando, na realidade, não.

Mas o filme não termina com o choro de Nora. Não, o filme termina com ela sendo abraçada pelo marido, Arthur, que parecia ser um coadjuvante até poucas cenas antes. Naquela passagem em que conversa com Nora na cama, dizendo que não tinha como competir com Hae Sung, pela história que construíram, e que se fosse um filme ele seria uma espécie de vilão, nossa perspectiva começa a mudar. Ainda que o espectador não torça por ele, não tem como considerá-lo nem um vilão, nem mesmo que Nora não devesse ficar com ele. Ainda mais quando vemos o sacrifício que vem fazendo há anos para acessar uma parte de Nora que sentia que lhe era vedada, e tinha a ver com a Coreia, pelo falar de Nora durante o sono. Daí porque fez questão de aprender coreano, para ir onde quer que Nora fosse ou estivesse. Ou seja, Arthur fez a escolha que nem Hae Sung ou Nora fizeram, de ir aonde o outro estava.

Ao ver como Nora ficou naqueles dias em que Hae Sung esteve por lá, Arthur enfim entendeu a parte que Nora mantinha fechada, não apenas para ele, mas também para si mesma. Poderia perfeitamente se sentir enganado, traído, ofendido, mas escolheu amar Nora. Não tentou evitar nada, não reclamou, apenas sofreu, esperando. E, na espera derradeira, sentado na escadinha que dava acesso à casa deles, viu Nora voltar chorando. Um choro que se por um lado confirmava o amor dela por Hae Sung, por outro também significava que aquela parte dentro dela estava destrancada e que, enfim, seu amor poderia entrar como uma cura. Porque dor de amor só com amor se cura. O choro de Nora era também a oportunidade do casal, enfim, tornar-se “uma só carne”.

E é a escolha derradeira dele, levantando-se para abraçá-la e confortá-la. É como o filme termina, com sua escolha de amar. E é disso que se trata no fim das contas essa meditação sobre vidas possíveis que não foram vividas, pouco importando a razão, ou sobre aquelas vividas, mas que terminaram ficando no passado. Seja como foi, como for, e mesmo diante da tristeza do que não foi, mas poderia ter sido, ou do que foi, mas não é mais, o presente traz sempre nova oportunidade de escolher. No caso, entre a opção de chafurdar na autopiedade, vivendo pelo retrovisor, ou decidir se levantar e abraçar amorosamente a vida, esteja ela como estiver.

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