De repente começam a falar sobre um filme chamado “Nefarious” e eu não dou bola. É que não gosto de filme de terror. Mas aí falam de novo e de novo e, entre os amigos, os que já tinham assistindo à produção de baixíssimo orçamento começam a elogiar os aspectos teológicos do filme e. Bom, o fato é que “Nefarious”, ausente de todos os grandes serviços de streaming e dos cinemas, está circulando loucamente entre a direita cristã. Não é preciso nem recorrer à Locadora Sueca. Uma hora é bem capaz de ele simplesmente aparecer no seu zap.
“Mas do que é que ele está falando?”, você talvez se pergunte. É justo. Me empolguei aqui e nem expliquei que “Nefarious” é um filme supostamente de terror e que conta a história de um condenado à morte em seu último dia de vida. Um psiquiatra é chamado para atestar a sanidade do infeliz e descobre que ele está (surpresa!) possuído pelo cramulhão. O resto é história e, provavelmente, uns spoilers que juro que tentarei evitar.
Assim como “Barbie”, “Nefarious” é um fenômeno cultural. Diferentemente de “Barbie”, “Nefarious” é uma produção tão simples que chega a ser precária. É basicamente uma peça de teatro, um diálogo entre o demônio que se apossou do assassino e o psiquiatra. A única cena de terror do filme é quando uma lâmpada explode para o diabo mostrar seu poder. E no final, quando o coisa-ruim volta a se apresentar ao psiquiatra. Nessa hora, confesso, até rolou um medinho. De leve.
Mas, como já disse (na verdade acabei de dizer), o filme de “terror cristão” virou um fenômeno cultural assemelhado ao de “O Exorcista”. E o mérito disso é dos roteiristas que, de acordo com amigos muito mais inteligentes do que eu, escreveram o filme mais teologicamente correto de 2023. Ou da história do cinema, se você for exagerado também. Eis alguns dos aspectos teológicos do filme e que meus amigos dizem serem dignos de nota:
- A ideia de que a Cruz foi uma armadilha para os demônios. Eles sabiam que Jesus era o Messias, mas não tinham claro que ele era Deus, nem que o plano de salvação da humanidade passava pela destruição da morte pela morte.
- Quando ele, o diabo, fala que os anjos caídos abriram espaço no céu para os homens. Os santos são exatamente isso: substitutos na corte celeste dos anjos que caíram.
- As etapas da possessão, um processo longo, que começa pelos pensamentos, passa por ações inspiradas pelo mal e vai até o "hábito do mal" se tornar uma segunda natureza na pessoa.
- Quando o diabo diz que os demônios são extremamente racionais e "contemplam a raiz do próprio ser".
- A justificativa clássica para o livre-arbítrio. O demônio provoca o psiquiatra só para ouvi-lo recitar os argumentos tradicionais pró-aborto, como “o corpo é dela”, etc.
- O padre cheio de explicações psicológicas para o mal e que não representa perigo nenhum para o demônio. Ele parece castrado.
- O diabo dizendo que a ideologia da diversidade não era coisa dele. Que isso os humanos inventaram sozinhos.
- O diabo odeia a condição humana e deixa isso claro ao negar ao possesso uma última refeição antes de ele se sentar na cadeira elétrica.
O diabo fez o L?
Mas não foram os aspectos teológicos que transformaram “Nefarious” no assunto mais discutido nas mesas de bar cristãs, conservadores, direitistas – chame como quiser. Foram os aspectos políticos. Porque, em seu proselitismo escancarado, o filme defende a tese de que a aderência ideológica à esquerda é fruto de uma possessão demoníaca em massa. Uma coisa assim escancaradamente dostoievskiana, me ocorre agora.
Não sei você, mas não tenho muita dúvida de que o diabo fezoele. Aí estão as novas resoluções do Conselho Nacional da Saúde que não me deixam mentir. Sem falar no uso constante da cizânia como ferramenta política – uma espécie de mesa de pôquer infernal na qual a aposta da vez é o governador de Minas Gerais, Romeu Zema. Mas o que isso quer dizer exatamente? A julgar pela proposta de “Nefarious”, parece até que Lula & Seus Luletes não são responsáveis por suas escolhas, já que agiriam possuídos pelo tinhoso. Será? Ou será que é do interesse do diabo que atribuamos a ele o mérito diabólico de manipular o livre-arbítrio de pessoas que defendem ideias inegavelmente más – ou até malignas?
Mas o mais importante neste argumento todo eu reservei a você que chegou até aqui. Merece até dois pontos: é que tem muita gente que se deixou seduzir pelo discurso de “Nefarious” e que, na luta contra o mal, agora se vê destinado ao Céu simplesmente por suas afiliações políticas. Como se a postura antiaborto, antieutanásia e antiaquelaideologialá bastassem para garantir às pessoas um lugarzinho ao lado de Deus. Como se a caridade e a humildade fossem menos importantes do que ter uma arma e defender o livre mercado. Percebe?
Outra coisa a se notar no filme é que, ao tornar o esquerdismo diabólico e impassível de redenção, “Nefarious” exclui a possibilidade de que haja misericórdia. Logo, o roteiro legitima um conflito mundano e passageiro, transformando-o em algo eterno e irreconciliável. O que, convenhamos, é o contrário do que nos ensina Jesus Cristo: ame e reze por seus inimigos, mesmo que você ache que ele está possuído pelo arrenegado. E talvez esteja mesmo.
[Para uma visão complementar deste texto, sugiro a leitura da ótima coluna do também ótimo Francisco Escorsim]
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