Você já se perguntou o que aconteceria caso a Alemanha nazista e o Japão tivessem se tornado grandes potências? É essa especulação que Philip K. Dick se propõe a construir no livro O Homem do Castelo Alto, trazido ao Brasil pela Aleph, com tradução de Fábio Fernandes e uma nova edição ilustrada por Rafael Coutinho.
No livro, Dick elabora um cenário em que a tríplice dos Países do Eixo ganhou a Segunda Guerra Mundial. Em decorrência disso, o mundo se tornou um campo de experimentações dos nazistas e japonesas, com pouco espaço reservado para os italianos. Os alemães conseguem exterminar a população judaica e partem para a dominação e genocídio de negros, ao mesmo tempo em que planejam uma viagem até Marte — depois de pisar na Lua. Por outro lado, japoneses destroem florestas e criam impérios na América do Sul, aumentando as fronteiras de sua dominação cultural.
A narrativa é centrada nos Estados Unidos. A maneira como o país acabou dividido e suas diferentes formas de governo exemplificam as visões ideológicas alemãs e japonesas: a menor fatia da divisão é no oeste do país, transformada em EAP (Estados Americanos do Pacífico) e controlada pelo Japão. Ali, há uma forte obediência em relação ao que vem de Tóquio, além da disseminação da ideologia japonesa: cultura, hierarquia e misticismo religioso, com forte presença do I Ching como oráculo e conselheiro.
No meio do país existe o Estado das Montanhas Rochosas, uma zona neutra e sem lei que abriga diversas pessoas desesperançosas e sem rumo, mas com acesso a livros e outros produtos proibidos. A maior parte do país, no leste, é o que ainda é chamado de Estados Unidos, mas na realidade é um conjunto de Estados Nacionais-Socialistas controlado pelo partido nazista, com ordens diretas de Berlim.
A trama se desenrola enquanto acompanhamos cinco protagonistas diferentes que se cruzam ao longo do livro de maneira direta e indireta. O primeiro dos personagens é Robert Childan, um comerciante da arte americana, que se vê dentro de um mercado de falsificações. Outra personagem é Juliana Frink, uma mulher que encontra Joe Cinadella e se vê envolta em uma trama política. Frank Frink, ex-marido de Juliana, é um judeu disfarçado e protagonista do terceiro arco. Frank tenta, com seu amigo McCarthy, começar uma joalheria e produzir artes americanas autênticas, de vanguarda.
A quarta e a quinta história são do sr. Baynes, um aparente vendedor sueco que pretende organizar um encontro secreto com um vendedor japonês, e de Nobusuke Tagomi, um dedicado trabalhador do governo japonês que deve servir como intermediário para tal reunião, mas se vê em uma crise de valores ao perder a compreensão do sentido da vida.
Cada um dos arcos fomenta reflexões específicas e complementares. Algumas delas são relacionadas ao cenário, como a importância da cultura e do I Ching para os costumes japoneses, ou a exibição da psicopatia e paranoia dos nazistas. Outras se tornam reflexões filosóficas maiores, como as crises nos valores da arte, principalmente no que diz respeito ao que é americano autêntico e às artes de vanguarda.
Potencial de renovação
Uma dessas questões maiores é a própria reflexão sobre o que é a realidade, tão cara ao Philip K. Dick e presente em diversas de suas obras. Em O Homem do Castelo Alto, a questão é materializada em um livro proibido pela Alemanha, mas lido por todos os personagens: O gafanhoto torna-se pesado, escrito por Hawthorne Abendsen, ou o “Homem do Castelo Alto”.
O livro traz a narrativa de um mundo onde a Alemanha e o Japão perderam a guerra, dominado pelas potências dos Estados Unidos e da União Soviética, com um futuro prevalecimento dos americanos. No entanto, conforme os desdobramentos do livro se apresentam, vamos descobrindo que O gafanhoto torna-se pesado é, tampouco, a nossa realidade.
Abendsen escreveu o livro de acordo com as indicações do I Ching, o milenar Livro das mutações chinês. Dick usa o livro para mostrar conexões místicas e a força do destino na narrativa, uma energia tão poderosa que dois personagens guiam suas vidas de acordo com suas respostas. É das revelações dos 64 hexagramas do oráculo que surge a utopia de O gafanhoto torna-se pesado.
Essa “obra dentro da obra” é o combustível das inquietações e o fogo da esperança dos personagens. Dentro da distopia em que vivem, é o livro de Abendsen que fornece para os personagens um caminho utópico a seguir e, dessa forma, o peso do livro se amplifica quando descobre-se que não se trata de uma especulação ficcional, mas de um relato.
Em O Homem do Castelo Alto, Philip K. Dick nos mostra diversas obras de arte sem tons revolucionários. A arte japonesa surge como uma representação espiritual, marcada pela ânsia de colecionar objetos que tenham uma historicidade em si — herança que se revela falsa logo nos primeiros capítulos; a intitulada cultura americana nativa é composta por itens de propaganda, como tampinhas de garrafa, ou objetos esvaziados que pertenciam à cultura pop, como um relógio do Mickey ou quadrinhos de super-heróis; por fim, a arte nazista é quase inexistente, pois é feita para enaltecer o ideal ariano e para veicular a ideologia do partido, rejeitando qualquer vanguarda artística.
Em seu texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin analisa uma mudança na existência das obras de arte. A passagem das obras com aura, ou seja, objetos que carregam em si as marcas de sua existência no tempo, para a obra de arte reproduzida de maneira técnica.
Benjamin afirma que, além dessa mudança associar o pensamento técnico à interpretação da obra de arte, faz com que a obra deixe de ter sua função social ritualística e adquira a função política. A questão política na obra vai além de refletir valores, crenças ou os poderes do seu momento histórico: existe ali a perspectiva de ver a obra de arte como conservação ou ruptura.
Dick nos apresenta a arte enquanto conservação na forma do que é legítimo, seja nazista ou japonês. Sem valorizar a experiência da alteridade na arte, impõe seus valores morais. Ao trazer questões de renovação artística, como o livro de Abendsen ou as joias de Frink, o autor resgata a ideia de uma arte com potencial de renovação, imaginação, experimentação e contato.
Ao serem tocados pelas obras, todos os personagens têm renovações — sejam elas políticas, sociais ou espirituais. É o encontro com uma arte revolucionária que faz com que os personagens abram suas mentes e sonhem com novas proposições para a distopia em que vivem.
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