Entre os temas mais caros às mulheres está, sem dúvida, a maternidade — o poder de gerar a vida, de perpetuá-la. Ao mesmo tempo, a maternidade — e o amor materno enquanto história narrada até os dias de hoje — é uma das formas mais intensas de opressão às mulheres. Tanto para aquelas que desejam ser mães e precisam lidar diariamente com mitos acerca da maternidade quanto para as que não encontram significado nisso ou não podem fisicamente vivenciar esta experiência. Em Um amor conquistado, Elisabeth Badinter observou que o amor materno não é algo inerente às mulheres, mas algo que se adquire, uma construção social. Apesar disso, para as próprias mulheres a associação da maternidade como única coisa que dá sentido à existência feminina ainda pesa, como vemos no romance de Gabriela Aguerre.
A protagonista de O quarto branco é uma uruguaia criada no Brasil que, aos 40 anos, acaba de sofrer um aborto espontâneo e descobre não ser mais capaz de ter filhos. A dor dessa perda, tão significativa para as mulheres, é o ponto de partida para as reflexões sobre a própria existência, e também sobre o passado da personagem. O vazio a partir da perda de um filho e o vazio de não poder cumprir a expectativa imposta às mulheres de serem responsáveis por gerar outra vida pesam sobre a personagem e ecoam em todo o romance, do qual transborda a sensação de desamparo. “Todas as mãos que tinham me carregado até aqui parecem ter sumido”, diz a personagem Gloria.
No momento em que descobre não poder mais ter filhos e é tomada por um sentimento intenso de desamparo, Gloria busca conforto na presença materna, mas não encontra colo para sua dor. A relação mãe e filha, cheia de rupturas e silêncios, expressa uma frieza e leva o leitor a refletir sobre a noção de maternidade que alimentamos, aquela idealizada, e a concreta, real, que pode não atender às expectativas tradicionais. Assim, o elo afetivo que mais importa para a personagem acaba por ser o amor paterno e não o materno, pois é na figura paterna que Gloria encontra maior identificação e empatia. É ao pai que ela conta o resultado do exame que estabelece não poder mais engravidar. É a ele que ela pergunta se isso a faz menos completa, menos capaz de ser feliz.
O quarto em branco que dá nome ao livro é o quarto vazio, antes destinado ao bebê que não chegou a ser. Agora, muitas coisas se acumulam ali: o que não foi resolvido, o que não encontra mais lugar para estar e ser, tudo sem cor e sem movimento, ao mesmo tempo em que ali é possível ouvir as muitas vozes que continuam a habitar a ausência, o vazio, a vida da personagem. São as vozes do passado, das histórias não contadas de família, mas também das histórias vividas e sonhadas, lembranças que trazem algum aconchego ao quarto vazio — “Um quarto que falava muitas línguas, onde muitas vozes eram ouvidas, onde era impossível estar sem sentir a falta de todas as coisas que faltam”.
O primeiro impacto do aborto espontâneo sofrido pela personagem se dá no próprio relacionamento afetivo de Gloria com Sandor, o pai da criança perdida. Como lidar com o vazio da perda em uma relação? Onde estão as palavras para expressar a dor e o espaço destinado a um filho? Gloria, a protagonista, decide então voltar a Montevidéu, afastando-se do parceiro e em busca de alguma paz. O voltar para casa é uma forma de reencontro consigo mesma e com suas raízes, um lugar onde as ruas remetem às melhores lembranças de infância e que representa, acima de tudo, pertencimento. O simples fato de ouvir sua língua materna e seu sotaque oferecem acalento à personagem que se reaproxima de seu passado familiar e descobre que teve uma irmã gêmea, falecida pouco tempo depois do nascimento. A irmã gêmea, que pode ser lida como o duplo, aponta para outra ausência e outra perda maior, também silenciada. A volta a Montevidéu é também uma forma de regressar a si mesma, de ver-se refletida no espelho desse duplo, sua irmã Gaia.
O duplo
O tema do duplo, tão comum na literatura, fala da duplicidade do eu e pode ser manifestado de várias formas. No romance de Gabriela Aguerre, temos a irmã gêmea que não sobrevive e que, poucos minutos antes de falecer, ainda um bebê nos braços da mãe, é batizada com o nome da outra filha, a que sobreviveu, Gaia. A história da troca de nomes pouco antes da morte, encontrada por Gloria no antigo diário da mãe, logo depois é negada, rasurada, como as páginas destacadas do diário. Tudo isso é invenção ou fato? Uma lembrança ou apenas um delírio? A irmã gêmea justifica a ausência e o vazio sentidos desde sempre pela personagem, que não se sente inteira, nem uma só. Ao mesmo tempo, Gloria e Gaia problematizam a relação entre a vida e a morte, entre a lembrança e o esquecimento. Ao decidir voltar a Montevidéu, Gloria reencontra o tio que cuidou durante todos esses anos da lápide onde Gaia está enterrada no cemitério e a necessidade de libertar as cinzas da irmã morta é o caminho encontrado por Gloria para se libertar do peso desse vazio em sua própria história.
O regresso é também o momento de escutar as vozes silenciadas do passado, não apenas da irmã falecida tão jovem, mas das histórias de família de uma época em que a ditadura imperava no Uruguai e as vozes sussurravam em resistência. O impacto de crescer sob o véu de um regime autoritário é narrado pela protagonista, que desde cedo aprendeu o significado da palavra exílio. É nesse ponto que as ruas de Montevidéu surgem no romance como numa crônica de saudades. O encontro com as inúmeras cartas trocadas entre a mãe, no exílio, e a avó, que permaneceu em Montevidéu, remetem ao percurso solitário daqueles que são obrigados a deixar sua pátria, seu lar. O encontro com cartas escritas por ela mesma, ainda criança, remetem ao próprio processo da escrita: “Reler o que não foi escrito para mim, mas por mim, me fez pensar que no fundo escrevemos para nós mesmos, em alguma instância”.
Entre pai e filha
O pai da personagem Gloria está internado no hospital quando ela passa por um aborto e os filhos se revezam para acompanhá-lo. A relação terna entre pai e filha é o bálsamo que Gloria encontra para lidar com a própria ideia de não poder ter mais um filho. É por meio do pai que se constitui esse elo com a terra natal, com as memórias de um lugar de que se tem saudade. Entre os dois a relação é de proximidade e afeto, pois o pai quer apenas que Gloria seja feliz, não associando o fato de ela ter um filho à felicidade. Deixando-o no hospital enquanto ele se recupera, Gloria retorna a Montevidéu em busca de si mesma e da história da irmã, aquela que falece cedo demais e a mãe batiza com o seu nome, Gaia. Gaia que representa a terra, também perdida no exílio, e simboliza algo que não foi finalizado, como o que ainda dói e ecoa da ditadura que se abateu sobre o Uruguai e que muito afetou o país e a própria família da personagem.
O quarto branco é um romance que narra muitas perdas — desde a dor de perder uma irmã gêmea e sentir essa falta ecoando por toda a vida à dor de perder um filho, de perder um pai, de ver ruir um relacionamento, de perder um país e a ele regressar. Escrito com uma linguagem poética que impressiona pela potência, o romance de Gabriela Aguerre, narrado sob a perspectiva feminina, nos permite refletir sobre vida e morte, sobre medos e certezas, sobre ausências e incompletudes, sobre continuidade e descendência. Neste belíssimo romance sobre perdas, Gabriela Aguerre consegue narrar com poesia a dor e a ausência com extrema delicadeza e uma linguagem poética capaz de ocupar e dialogar com nossos medos e vazios.
© 2019 Rascunho. Publicado com permissão.
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