O incêndio do Museu Nacional no último domingo (2) levantou importantes discussões sobre como manter projetos culturais sustentáveis e modelos possíveis para a sobrevivência de outros espaços similares (ou para que simplesmente não acabem como o Museu Nacional).
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Ser um museu, no século 21, é missão complexa por não se tratar apenas de manter a reserva técnica em ordem ou de ser conveniente para a lógica das redes sociais, embora tais condições também não sejam dispensáveis. Estão em jogo novas dinâmicas de público, as ameaças de crise econômica e a dificuldade nacional de estabelecer modelos de gestão saudáveis.
Abaixo, selecionamos seis museus brasileiros com características especiais, cada qual bem-sucedido na qualidade de espaço aberto e de interesse público, com modelos próprios de gestão e alternativas para driblar as costumeiras crises do setor.
Pinacoteca (São Paulo)
A Pinacoteca de SaÌo Paulo eÌ um dos principais museus de artes visuais do Brasil. Fundada em 1905 pelo Governo do Estado de SaÌo Paulo, eÌ o museu de arte mais antigo da cidade e rota das principais mostras artísticas do mundo.
O espaço está instalado no antigo edifiÌcio do Liceu de Artes e OfiÌcios, projetado no final do seÌculo 19, depois passando por uma grande reforma no final da deÌcada de 1990. Em ampliação constante, tanto de estrutura quanto de acervo, a Pinacoteca terá mais um prédio em 2019, além da Pina Luz e da Pina Estação. O novo espaço está sendo construído sob uma escola estadual desativada em 2015, ao lado do Parque da Luz, e se chamará Pina Contemporânea.
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A instituição tem acervo de dez mil itens e preza pela transparência, com relatórios públicos detalhados de gastos, disponíveis no site da instituição. É sucesso de público e o museu número 1 do Brasil segundo o prêmio Travelers’ Choice Museus, ranking da TripAdvisor, site de viagens que apresenta informações e opiniões de usuários sobre conteúdos relacionados ao turismo.
O título de melhor museu do Brasil segundo um site de viagens gera certa animosidade no meio cultural. Os vencedores do Travelers’ Choice foram determinados com base em um algoritmo que leva em conta a quantidade e qualidade de avaliações e notas dos museus no mundo todo, em um período de 12 meses. Por se tratar de avaliações de caráter experiencial, não considera outros fatores como reserva técnica, variedade de mostras e projetos paralelos. Salutar lembrar que o governo federal não tem nenhum ranking específico.
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A Pinacoteca virou organização social de cultura no final de 2005 e opera por meio de gestão híbrida: o governo arca com 60% das despesas, montante direcionado para os custos fixos, como água e luz, e as exposições de longo prazo ou permanentes. Os 40% restantes são captados a partir de doações e de ingressos. Essa necessidade faz com que a curadoria invista pesadamente em exposições temporárias mais populares, que costumam atrair mais interesse e repercussão.
Também são idealizados feirões de venda com grifes famosas. Em 2016, a Pinacoteca lançou um álbum de fotografia com trabalhos originais de diversos artistas brasileiros renomados, como Vik Muniz. Cada exemplar custava R$ 30 mil. com as vendas, a instituição arrecadou R$ 1,5 milhão.
Museu do Futebol (São Paulo)
A premissa do Museu do Futebol é simples: tratar o futebol com respeito e como patrimônio cultural. Localizado numa área de 6.900 metros, embaixo das arquibancadas de um dos mais antigos estádios brasileiros, o Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, o popular Pacaembu, o Museu do Futebol foi inaugurado em 29 de setembro de 2008 e é um dos museus mais visitados do país.
Com o uso de multimeios, a história do futebol é contada como fábula, como Brasil profundo, conciliando viés histórico com tecnologia. A jornalista Laura Avancini, em Museu do Futebol: o Brasil com emoção, história e diversão, defende que visitar o espaço é percorrer a história brasileira no século 20 e 21 e perceber como nossos usos, costumes e comportamentos ilustram esta narrativa.
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“O futebol ajudou a formar a identidade brasileira, assim como a cultura brasileira ajudou a transformar o futebol. Os craques que o Brasil foi capaz de criar representam tanto a nossa cultura quanto os ícones das artes plásticas, da literatura, do teatro, da música. E o Museu do Futebol chega para consagrar, definitivamente, o futebol como cultura viva, inventiva e emocionante”.
O Museu do Futebol é classificado como museu squatter, erigido a partir de espaços geralmente abandonados e conservando aspectos da construção original — aqui, o concreto do teto das arquibancadas. “Museus temáticos permitem uma experiência intensa, o recorte específico, viabilizando a 'apropriação' e a reflexão sobre conteúdos”, acredita a socióloga Miriam Adelman, norte-americana, radicada no Brasil desde 1991. É também professora do Departamento de Ciências Sociais da UFPR.
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O Museu foi orçado em R$ 32,5 milhões de reais, reunidos via recursos do Governo do Estado de São Paulo e da Fundação Roberto Marinho, que divide os custos com o contribuinte. A instituição foi responsável pela concepção do projeto e gere os recursos anuais, evitando que o espaço tenha problemas básicos de manutenção.
O modelo recebe críticas por não deixar evidente quanto dinheiro público deve ser direcionado para um espaço de gestão compartilhada — o Museu do Amanhã, também da Fundação Roberto Marinho, recebeu da Prefeitura do Rio R$ 12 milhões em 2017.
Em 2017, o Museu do Futebol recebeu 264.878 visitantes presenciais, em 308 dias de funcionamento.
Museu Oscar Niemeyer (Curitiba)
Localizado no Centro Cívico de Curitiba, o MON consegue algo que poucos museus conseguem conciliar: ser espaço cultural e área de convívio social. Com cerca de 35 mil metros quadrados de área construída e mais de 17 mil metros quadrados de área expositiva, considerada a maior da América Latina, o espaço é quase destino obrigatório para quem visita a capital, o Olho como cartão postal. Os curitibanos também aproveitam a ampla área verde para passear com animais de estimação e realizar outras atividades recreativas, como ioga e passeios de bicicleta. Frequentemente, a região recebe festivais gastronômicos e musicais.
O MON foi inaugurado em 2002. Já realizou ao longo deste período mais de 300 mostras nacionais, internacionais e itinerantes, com destaque para “ A magia de Escher”, a mais completa exposição já realizada no Brasil dedicada ao artista gráfico holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972), em 2013, que permaneceu uma longa temporada com lotação máxima.
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“Ao criar seus projetos expositivos, um museu do século 21 precisa estar em conexão com a sociedade, mediando o que preserva com os anseios do público que o visita”, define Renata Senna Garrafoni, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e com importantes trabalhos na área de Arqueologia Pública. “Há diferentes tipos de museus, mas os que mais marcam nossas memórias são os que conseguem fazer com que os visitantes se conectem com suas exposições”, completa.
O MON recebeu 367 mil pessoas em 2017, um aumento de mais de 20% em relação ao ano anterior. Em 15 anos, mais de 3 milhões de pessoas passaram pelo espaço. Com faturamento de R$ 15 milhões em 2017 e ingressos a preços populares, o corpo técnico da instituição busca fugir da dependência do dinheiro público, apostando em gestão híbrida, com recursos públicos e privados.
Atualmente, a participação do erário no faturamento caiu de 90%, em 2015, para 70% em 2017. Entre as medidas para tornar o espaço mais rentável estão a cafeteria dentro do museu, a terceirização do estacionamento e a locação do auditório para eventos de diversas áreas — o Museu fica numa região central da cidade, interessante para muitos projetos à margem do poder público.
Além disso, o MON criou o projeto Sou Patrono, que visa doações de grandes empresários paranaenses e dá contrapartidas para apoiadores, como participação em curadoria de obras. Essa relação entre o público e o privado suscita críticas dos mais puristas, que costumam ver ingerência do setor privado na definição de critérios artísticos e conflito de interesses. Em 2017, a instituição arrecadou R$ 220 mil pelo sistema.
Museu Vivo do São Bento (Duque de Caxias)
O Museu Vivo do São Bento, localizado em Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro, é o que se chama de ecomuseu, modelo que une museu histórico com espaço ecológico, pensando também em integrar a comunidade local e descentralizar a administração.
O espaço de 15 hectares foi inaugurado em 2011 e rapidamente se tornou rota turística na Baixada Fluminense, com passeios, de até três horas, por diversos patrimônios históricos e culturais — Duque de Caxias é um dos mais importantes sítios arqueológicos brasileiros.
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“O Museu Vivo é especial por seu modelo de gestão”, defende o museólogo André Andion Angulo, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF). “Não há a figura de um diretor soberano e sim um colegiado de professores do município que o administram”, continua. “O espaço nasceu sob os auspícios da Museologia Social, que é um conceito que deve, em breve, ‘invadir’ os museus normativos brasileiros, acabando com os chamados museus tradicionais”, acredita Angulo. O modelo visa democratizar as decisões e diminuir substancialmente a burocracia, tornando o museu mais atrativo, mais dinâmico em seus projetos.
São Bento possui cinco prédios e uma área de vegetação ainda preservada. O espaço ainda promove cineclubes, exposições itinerantes e oficinas de artesanato regulares para a comunidade local, focadas em economia criativa. A produção toda das oficinas é comercializada na região e a renda é revertida para os produtores.
Museu do Holocausto (Curitiba)
Inaugurado em caráter oficial em novembro de 2011 em Curitiba, o Museu do Holocausto — espaço dedicado à memória de um dos episódios mais terríveis da História — foi aberto ao público em 2012.
Iniciativa da Associação Casa de Cultura Beit Yaacov, presidida por Miguel Krigsner, o espaço tem cerca de 700 metros quadrados e apresenta o contexto histórico que envolve o Holocausto, com recursos midiáticos que contam as histórias de vida dos sobreviventes e espaços que transitam entre a memória oral e o percurso político, em caráter didático.
O local recebe apenas pessoas e grupos com agendamento prévio, principalmente escolas. “Ao contrário do que se imagina, museus costumam ter um público constante no Brasil”, argumenta Renata Garrafoni. “Em especial quando o museu abre um bom canal de comunicação com a sociedade e passa a ser visto como um espaço de diálogo, de trocas, quando suas exposições buscam expressar diversas facetas da cultura e da sociedade”, reforça.
Primeiro museu sobre o Holocausto no Brasil, o espaço reúne doações dos Museus do Holocausto de Jerusalém e Washington, do Museu de Auschwitz e fundações, como a do cineasta Steven Spielberg, que contribuiu com diversos depoimentos de sobreviventes gravados em vídeo. Também são fotografias, mapas, documentos pessoais, texturas, uma experiência pesada de imersão, característica que Tânia Gayer Elhke, membro do Conselho Estadual da Cultura (CONSEC), reforça como fundamental para um museu do século 21.
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“O público que frequenta o museu atualmente deve sentir que tudo o que vê fez parte da história do lugar em que vive, do seu povo, carregar pra si o patrimônio cultural envolvido, a memória coletiva”, define.
Apesar de muito ligada à comunidade judaica da cidade, o espaço também retrata as vítimas perseguidas por raça, ideologia e oposição ao nazismo. Segundo Carlos Reiss, coordenador-geral do museu e especialista na história da Shoá (palavra hebraica para se referir ao holocausto), essa é uma das principais diferenças entre o Museu do Holocausto curitibano e o Memorial da Imigração Judaica.
Em média, o espaço recebe 700 pessoas por semana, o que dá, desde 2013, a média de 36 mil pessoas por ano. As visitas são agendadas, com entrada franca, e os custos do museu são mantidos pela comunidade judaica da cidade.
Instituto Ricardo Brennand (Recife)
O Instituto Ricardo Brennand é um espaço cultural sem fins lucrativos inaugurado em 2002 e erigido a partir da coleção particular do milionário pernambucano Ricardo Coimbra de Almeida Brennand, um dos maiores colecionadores de arte do Brasil.
Localizado nas terras do antigo engenho São João, no bairro da Várzea, o complexo arquitetônico ocupa uma área de 77.603 m² cercada por uma reserva de mata atlântica preservada.
O espaço possui uma das mais modernas instalações museológicas do Brasil, abrangendo o Museu Castelo São João (museu de armas brancas), pinacoteca, biblioteca, auditório, jardins das esculturas e uma galeria para exposições temporárias e eventos.
O Instituto também realiza periodicamente festivais culturais e oficinas voltadas ao público infantil, além de cursos sobre arte e museologia. O tour pelo museu custa R$ 30 e dá pra pagar em cartão de crédito e de débito, o que pode parecer simples, mas é opção indisponível em muitos espaços culturais.
Como forma de incorporar o orçamento anual, abre suas portas para eventos privados. Os interessados podem solicitar orçamento no próprio site. Não raro, é destino de famosos no Nordeste.